Franciscanismo

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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A Morte na visão de São Francisco


Dom Celso Franco de Oliveira
Bispo Anglicano

Inicialmente, é-me imperioso agradecer o oportuno convite que me foi feito pelo frei Clarêncio, para celebrarmos hoje, o “ Transito de são Francisco,” pensando com vocês, “ “A Morte na Visão de São Francisco” ou o “Transito na visão de são Francisco”.
É bastante curioso e significativo chamar a morte de “transito, porque a palavra “transito”, segundo o nosso vernáculo, significa movimento, percurso, marcha, efeito de caminhar, e é nesse sentido que para se falar da morte de são Francisco, temos que ter em mente a morte não com um fim-fim mas como transito, dando-nos a idéia de que o nosso Francisco não se acaba, não desaparece, pelo contrario transita entre nós, se eterniza, continua vivo e se presentifica, não somente entre os religiosos mas também no mundo secular, constituindo-se hoje, para o nosso ecossistema, uma espécie de ícone no resgate da qualidade de vida neste planeta terra que “ geme com dores de parto, aguardando a adoção dos filhos,” com disse São Paulo na sua Epístola ao Romanos.
Lembro-me ainda da palavra “transito” quando, há poucos anos atrás, participei de uma jornada de psicanálise no Colégio dos Cirurgiões em Botafogo, cujo tema da Jornada foi “Winnicott em Transito” ocasião em que celebrava os cem anos desse inesquecível psicanalista inglês cuja contribuição psicanalítica continua em ressonância dentro dos nossos consultórios até hoje. Winnicott fez o seu transito em 1971 deixando em um de seus livros o seguinte testamento: “Quero estar vivo no momento da minha morte”.
A historia de São Francisco, particularmente, o seu jeito de ser, sua trajetória de vida e, principalmente, a forma como encarou o seu “transito”, poderia nos autorizar a falar de São Francisco em Transito, em movimento, um homem a caminho, ou ainda, se quisermos, são Francisco “em transe”.
Basta aprofundarmos algumas considerações psicológicas sobre seu estilo de vida, para descobrirmos um homem em transe, não no sentido daquilo que chamamos “estados alterados de consciência” induzido por um procedimento hipnótico, letárgico, mas um transe vivido como experiência do êxtase e do numinoso, aquela experiência capaz de alterar o nosso olhar sobre o mundo, capaz de transcender, de superar, de re-significar a existência e de colocar- nos em inteira disponibilidade como quem se transfigura.
Assim vemos um São Francisco transfigurado quando mesmo doente e cego, cantava seu cântico ao irmão sol embora não pudesse mais contempla-lo. É que o sol que Francisco canta não é o sol que conhecemos mas o sol de sua interioridade, das suas riquezas interiores, porque só percebemos o brilho lá fora quando há brilho dentro de nós.
Quando se vive uma experiência de transfiguração, a morte sempre entendida como desenlace final, se transforma em transito. Deixa de ser um espantalho humano, para encapsular-se na própria vida. Vida e morte se eclipsam, como de forma brilhante nos diz Leonardo Boff “O sentido que damos a vida é o que damos a morte e o sentido que damos a morte é o sentido que damos a vida” A morte na visão de São Francisco vinha com um sabor de plenitude numa compreensão simbólica, mística, sapiencial e planetária.
Lamentavelmente, somos herdeiros de tradição cultural Newton-Cartesiana, onde a matéria e espírito se separam e se bifurcam em corpo e alma, como ainda quer pensar hoje a Igreja. Francisco foi o santo das sínteses e da reconciliação de tudo .
Hoje, a neurociencia que vai ganhando mais espaço nas pesquisas neorológicas, nos da conta que o nosso hemisfério cerebral, direito e esquerdo, com seus milhões de neuronios, interagem no corpo caloso, não mais entendidos como duas estâncias separadas, mas como superação unitária. Ambos com sua capacidade de síntese, vão formar o que os antigos chamavam de terceira visão ou o “chifre do unicórnio” neste sentido é que a visão de Francisco sobre a morte, vai dar lugar a síntese da vida e longe da morte ser o lugar morbido, de prantos e culpabilizações, transforma-se em acolhimento, num espaço de cantoria, entoada não somente pelos seus confrades presentes mas também pelo contracanto sinfônico de toda criação.
A vida e o transito de São Francisco, nos fascina, na medida em que nos indagamos pela psicogêneses de suas gigantescas superações, sua coragem, desprendimento, energia e sobretudo sua resiliência, aquela capacidade que alguém possui no sentido de superar adversidades. De romper com apegos que impedem de buscarmos nossa singularidade, livrando-nos, assim, de vivermos assujeitados ao desejo do outro sem que tenhamos a capacidade de nos tornar pessoas inteiras e desenvolver nossas potencialidades como indivíduos.
E a primeira “morte”, o primeiro “corte” que Francisco constroi foi o sua individuaçao com o seu pai e na seqüência com o Bispo local.
Francisco vai individualizar-se em relação a seu pai, o Sr. Bernardoni, um pai dominador, consumista, que passa a maior parte de sua vida pensando mais nos seus lucros como comerciante, do que perceber a grandiosidade do filho. É significativo o gesto de Francisco tentando se libertar desse domínio paterno, quando sai pelas ruas distribuindo os bens do Sr. Bernardoni entre os pobres.
Numa interpretação elementar desse gesto se poderia dizer que ao mesmo tempo que distribuía os bens do pai entre os pobres, tornava-se Francisco, ele mesmo, o bom pai que nunca teve. Era ele ainda o próprio pobre, o mendigo, o leproso, numa relação simultânea de sujeito e objeto.
O temor de perder na vida a oportunidade de relacionar-se, de viver radicalmente o amor que tanto pregou, de ser notado, de ser olhado, e desejado pelo pai, levou Francisco a desnudar-se, de despir-se diante do próprio pai sinalizando em primeiro lugar a quebra das relações que segundo consta não eram das melhores. E em segundo lugar, o rompimento com o sistema capitalista com o qual o pai e a Igreja na pessoa do Bispo, estavam comprometidos.
Uma vez completamente desnudo, Francisco entrega seus trajes ao pai. A nudez do jovem parece falar de seu desejo de mostra-se sem máscara diante do pai, esperando dele uma certa reação de condescendência ou um gesto que expressasse algum sinal de acolhimento paternal. É que o temor que mais nos atinge enquanto seres humanos é o temor do desamparo, o medo da solidão que sempre se reporta a perda do amor do pai.
Experienciando a dor da falta do amor do pai real, Francisco vai singrar outros mares no encalço de outras pais simbólicos. Afinal, Francisco sente uma extrema necessidade de substitutivos simbólicos capazes de “ressuscitá-lo” da morte de sua relação perdida . O texto de sua conhecida oração, especialmente onde encontramos as palavras “onde houve discórdia que eu leve a união, onde desespero que eu leve esperança, que eu procure mais consolar que ser consolado” encontramos Francisco falando de si mesmo, aludindo seus proprios registros internos numa tentativa de superação dos mesmos.
Alguém disse que “de dentro do caos, irrompe uma ordem superior que se auto-regula e se refaz, e esta ordem superior e a vida” Francisco se identifica com EROS o representante da Pulsão de Vida, pulsão que nos autoriza a liberdade, a espontaneidade, a fantasia e a expressão do desejo. Francisco de forma heróica e, quase sobre-humana, transpôs os umbrais da pulsão de morte, do sentimento de terminalidade. Irmana-se com a morte num vinculo de cumplicidade e companheirismo.
Esse “irmao-sempre-alegre” como costumeiramente e chamado, torna-se alguém para alem do inorgânico ou para onde nos arrasta e nos atrai a pulsao de morte. Superando de forma inequívoca as categorias maniqueístas do bem e do mal, Francisco se transfigura numa espécie de hispostase cósmica, reconcilia-se com todas as criaturas, mergulha no mistério insondável, vive como ressuscitado ainda que na existência terrena. Traz dentro de si a sensação intensa de êxtase, perde o “self-objeto” percebendo-se não limitado ao corpo.
Sua morte cantada, longe de ser uma experiência terminal, e recebida como a entrada do vazio na plenitude, do finito para o infinito, da falta para a totalidade. Francisco vira símbolo de toda saudade e de todo desejo de completude humana e não humana e, mais que isso, Francisco se consagra como um dos arquétipos da humanidade reconciliada.


O Tau Franciscano


Era como se sua missão consistisse em traçar o Tau na fronte das pessoas que gemem e choram” (Boaventura)

A Fraternidade universal franciscana espalhada no mundo inteiro, tem no Tau a concentração de sua espiritualidade. Símbolo da vida, da cor-dialidade, da com-fraternização, da sensibilidade, da leveza, da energia central que anima o espírito e da conversão permanente ao Cristo. O Tau prefigura a cruz quando ocupa o último lugar no alfabeto hebraico, assemelhando-se à forma de cruz.
O alfabeto grego o coloca no décimo nono lugar sugerindo um “T” maiúsculo. É que na antiguidade dava-se muita atenção à correlação entre a letra e o número e vice-versa, derivando daí a teoria da “gematria” que dava as palavras bíblicas certo valor numérico. O Tau representava, por exemplo, o número trezentos por sua derivação do três e do cem e múltiplo de dez dando o sentido de completude. O texto de Ezequiel (9,1-11), tornou-se um clássico na evolução histórica do Tau onde por duas vezes é mencionado o sinal da cruz ou “T” do alfabeto hebraico que ali preserva do mal o povo justo. “Percorra a cidade de Jerusalém e marque com uma cruz (T) a testa dos indivíduos que estiverem gemendo por causa das abominações que se fizer no meio dela...” (v. 4). “Não toqueis nenhum homem sobre quem estiver o sinal” (v.6). Ainda no AT, dentro das prescrições de Moisés no Livro do Êxodo (l2, 21-23), os israelitas são identificados e poupados do anjo exterminador por mediação de um “sinal” impresso nos batentes das portas da casa. No livro do Apocalipse (7, 2-3) de forma análoga o exilado de Patmos registra o “selo de Deus” na fronte de seus servos. “Não façais mal à terra nem ao mar nem às árvores até que tenhamos o selo de nosso Deus na fronte de seus servos” há aí, segundo alguns comentaristas, uma forte referência ao Tau, como o “selo de Deus”, um “sinal” de salvação aos que experimentam a conversão e se tornam servos de Deus.
Geralmente esculpido em madeira tosca e suspenso por um cordão de couro, o Tau consagrou-se como símbolo da mística e testemunho de vida franciscana.
Fontes históricas dão conta que São Francisco aproximou-se inicialmente do Tau como sinal que identificava as congregações de apostolado caritativo-hospitaleiro, como por exemplo, a ordem hospitaleira de Santo Antonio Eremita, ou Antoninos, bastante conhecida no seu tempo que cuidava da assistência aos hansenianos. Foi também o Tau símbolo que inspirou São Francisco no seu apostolado entre os forasteiros e peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela, ele mesmo e seus frades se definiam como peregrinos.
Segundo Tomás de Celano, S. Francisco dava início as suas atividades diárias com o Tau e com ele assinava seus inúmeros “bilhetes” como também com o mesmo decorava as paredes da cela. Certa vez transportando um enfermo que agonizava, tocou-lhe a fronte com seu bastão ornamentado com o sinal do Tau , devolvendo-lhe a saúde.
Outra, e mais importante familiaridade de São Francisco com o Tau, é a aliança que o santo estabelece com a pobreza, escolhendo-a voluntariamente como uma acese de despojamento e identificação com os pobres, não somente entre os pobres mas como pobre, pobreza como disponibilidade interior, como uma maneira evangélica de ser, individuada, livre, comprometida-descomprometida.
O Tau ao lado de tantos outros sinais iconográficos cristãos, vai marcar também sua presença nas inscrições das catacumbas junto aos nomes dos mártires, assinalando sua eloqüência evangélica de resistência ao poder dos mais fortes e ao mesmo tempo excluindo qualquer possibilidade do “sinal” Tau ser reduzido a mero adorno decorativo dissociado do testemunho de vida e das virtudes essenciais fundamentadas na conversão e pobreza de quem ousa viver o Cristo crucificado e a riqueza e dimensão do “pax et bonum” da
espiritualidade franciscana.


Dom Celso Franco de Oliveira

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Espaço de estudo

A devoção natalina de São Francisco e Santa Clara

Para reencontrar a nossa "secularidade", deveríamos procurar responder à pergunta por que Francisco considerava o Natal "a festa das festas" (2Cel 1 99).
Para muitos teólogos, essa afirmação é uma aberração da piedade popular. No seu parecer, a época pascal (de Sexta-feira Santa até Pentecostes) constitui o ponto alto
do Ato litúrgico. De fato, em muitas partes, a festa de Natal foi reduzida a um acontecimento folclórico, sentimental e sem compromisso, uma espécie de fuga da realidade a um mundo tanto interior quanto irreal, que não tem nada que ver com a verdadeira vida.
É possível, porém, ver o Natal também de uma outra maneira. Nas suas teses, o teólogo franciscano Duns Scotus partiu teologicamente do amor de Deus. Deus se identifica de tal modo com o Amor que não pode ser entendido como isolado ou único. Não é, portanto, "um ser que existe para si mesmo", como foi formulado por vários filósofos. Pelo contrário, Deus é total doação, total entrega. Por isso, quer um mundo onde as criaturas amem a si mesmas e aos outros, formando uma única criação interdependente, que constitui uma espécie de rede, uma realidade definida pelas suas relações mútuas e não pelas suas delimitações e separações. Por este motivo, de um modo insuperável, Deus mesmo se fez presente numa criatura: Jesus de Nazaré. Através dele, deseja amar todo mundo e ser amado por todo mundo. Todos hão de reconhecer onde está o seu centro, para poder crescer à plena unidade no amor.
É por isso que Francisco celebrou a vinda de Deus ao mundo. Para ele, Deus é a encarnação da humildade, que se encontra até nas mínimas coisas: numa criança, que nasce num estábulo, no meio da indigência, da falta de abrigo, na pobreza e na miséria, em todas as necessidades, criadas por uma economia e uma política que permitem e aceitam a situação de refugiados e exilados, de pobres e leprosos como uma espécie de subprodutos. Deus nos convida a procurá-lo no meio dos pobres, também entre as criaturas sofredoras e famintas, entre seres humanos e animais. Por este motivo, Francisco queria conseguir que tanto o Imperador como também "todos os governantes dos povos" no mundo inteiro promulgassem leis que reconhecessem essa verdade. Para ele, o Natal dá o impulso para superar tanto a pobreza, como a fonte, para constituir o fundamento da verdadeira humanização das pessoas.
A continuação do Natal acontece na Eucaristia: Deus "se humilha todos os dias", entrando num pedaço insignificante de pão, partilhado pelos que acreditam nele (Adm1). Deus quer que - diariamente de novo - as pessoas se encontrem juntas na sua presença. Ninguém deveria continuar a se apegar a seus propósitos egoístas, ninguém deveria esconder-se no seu ninho individual, mas todos têm que se levantar de todos os lados para recomeçar a se reencontrar mutuamente e ao mundo inteiro: o mar e o campo, a terra e o céu: tudo há de reviver (CtOrd) e a "beatifica comunhão) (ParPn) que existe no céu há de se tornar visível e reconhecível já aqui na terra.
Natal significa uma subversão diária dos valores e uma transformação radical do comportamento humano. Aquilo que parece pequeno e insignificante tem que ser considerado grande; aquilo que é considerado importante e valioso tem que reverter à categoria das coisas sem valor. Os pensamentos de Deus não são os pensamentos humanos. Os leprosos pertencem ao centro, os poderosos têm de ceder-lhes o lugar central. A Família Franciscana é destinada a trazer a mudança divina e revolucionária para dentro do mundo, assim como Maria o exprimiu no seu canto Magnificat.
E é assim que Deus se une irrevogavelmente ao mundo. E somente aqueles que seguem o exemplo de Deus, assumindo o mundo para mudar o seu destino para o bem, estão do lado de Deus. Cruz e Ressurreição são extensões desse pensamento, são condensações, culminações, conseqüências dele. Portanto, Deus chega a ser a força histórica e modificadora para todos os que acreditam na Religião da Encarnação e que dão testemunho dela. Numa carta escrita por Francisco, ele definiu as pessoas que têm fé como "Mães de Deus". Como Maria, também nós podemos conceber Deus, carregando-o em nós e fazendo-o nascer pelas nossas boas obras. Portanto, podemos contribuir com nossa parte, para que Deus esteja realmente presente no mundo, de um modo visível e palpável (cf. 2CFi 53).
A seu modo, também Clara de Assis dá testemunho do mesmo mistério da Encarnação de Deus. Assumiu o pensamento místico do seu amigo Francisco para o aprofundar, alcançando um ponto alto na sua experiência interior, ao escrever a sua amiga, Inês de Praga: "Ama totalmente aquele que totalmente se deu por teu amor, aquele cuja beleza o sol e a lua admirará e cuja generosidade, preciosidade e grandeza não têm limites, isto é, ao Filho do Altíssimo, que nasceu de Maria, a qual permaneceu virgem depois do parto. Prende-te àquela dulcíssima Mãe, que engendrou tal filho que os céus não podiam conter e que, todavia, ela conteve no pequeno claustro de seu santo corpo e trouxe no seu seio virginal" (3Ctln 3). O infinitamente grande se limita; o inatingível se deixa tocar. Aqui Clara retoma o motivo de um antigo hino a Maria:
Aquele que a terra, o mar e o ar
Louvam, adoram e veneram;
Aquele, Senhor dos três mundos,
Foi contido no seio de Maria.
Seria bom se nós nos detivéssemos um pouco mais neste pensamento da livre autolimitação de Deus; pois, há de ficar o pensamento central da fé cristã. O fato da criação já foi um ato de autolimitação; Deus se retirou, se limitou para que a criação tivesse espaço, tivesse uma história autônoma, para que os seres humanos tivessem sua liberdade. E quando Deus se revela, então se submete à sua própria criação, se entrega nas mãos dos seres humanos, se deixa tocar, se faz presente em tudo que não é Deus.
Clara persegue essa idéia até os seus extremos: "Vejo como é manifesto que a alma do homem fiel, pela graça de Deus, a mais dignaç das criaturas, é maior do que o próprio céu. Pois os céus e todas as outras criaturas não conseguem conter o Criador, mas somente a alma do homem fiel pode ser sua mansão e sua morada. Isto é apenas possível pela caridade da qual estão privados os ímpios. Ora, aquele que é a Verdade diz: Quem me ama será amado pelo meu Pai e eu o amarei, e nós Viremos a ele e nele faremos a nossa morada" (Jô 14, 21-23) (3Ctln 4). Aquilo que aconteceu a Maria em nível biológico-histórico continua sendo uma possibilidade real em nível místico-espiritual para todo cristão que tem fé: a consciência de Deus, a Encarnação de Deus, a habitação de Deus dentro do ser humano.
Neste sentido, Clara escreveu a Inês: "Assim como a gloriosa Virgem das virgens o trouxe materialmente em seu corpo, da mesma maneira também tu, seguindo os seus passos, especialmente a humildade e a pobreza, sem dúvida alguma, poderás trazê-lo espiritualmente no teu casto e virginal coração. Deste modo, conterás aquele pelo qual tu, e todas as criaturas, são contidas. Igualmente possuirás algo mais precioso do que o resto dos bens passageiros que este mundo pode oferecer" (3Ctln 4).
Portanto, também para Santa Clara, o objetivo da Encarnação de Deus é o mundo, o universo.

Espaço de estudo


O mundo como "convento"
À primeira vista, também Francisco e Clara foram marcados pelo espírito de dualismo. Jejuavam e mortificavam-se, tratavam mal o seu "irmão jumento", quer dizer, seu próprio corpo, com tanta dureza que chega a ser quase incompreensível hoje em dia. Os dois "saíram do mundo". Francisco usou esse termo para expressar que o beijo que deu ao leproso significava realmente uma mudança radical na sua própria vida. Com esse passo, porém, não chegou a um estado extraterrestre, muito pelo contrário.

Talvez seja bom, relembrar aqui o trecho onde o próprio Francisco descreve sua conversão: "Foi assim que o Senhor me concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como estivesse em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para os leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia com eles. E, enquanto me retirava deles, justamente o que antes me parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo. E depois disto demorei só bem pouco e abandonei o mundo" (Test 1-3).

Em primeiro lugar, é preciso chamar atenção ao fato de que Francisco encontrou Deus no mundo, no abraço de um pobre excluído, desprezado e miserável, no encontro com a miséria social, que o confrontou na pessoa de um leproso. Portanto, Francisco abandonou um certo tipo de "mundo", ou seja, o mundo marcado pela desumanidade, que continua produzindo sempre novos "leprosos". E ele se integrou num outro mundo: num mundo caracterizado pela compaixão, que resgata o leproso, reintegrando-o no meio da sociedade. Francisco quer um mundo que termina com todas as formas de exclusão e onde se consegue chegar à experiência de Deus; assim como acontece num encontro autêntico, num abraço amigo, num beijo.

Que Francisco, de fato, não deixou o mundo, mas considerava o mundo como um lugar próprio para sua nova forma de vida, é demonstrado, por exemplo, pela nova lei que deu à sua fraternidade: "Quando os irmãos andarem pelo mundo, (devem encarnar o espírito do Evangelho)" (RegNB 14). Francisco concebia a sua comunidade como uma fraternidade nômada: Não devia fixar-se definitivamente em lugar nenhum, nem nos montes, nem nos vales. Ao máximo, poderia repousar-se por um pouco de tempo, para depois partir novamente e continuar a caminhada.

Num jogral maravilhoso, chamado "Sacrum Commercium", que foi escrito em meados do século XIII por um franciscano desconhecido, conta-se com a "Senhora Pobreza" pediu aos frades que lhe mostrassem o seu convento. "Conduziram-na a um certo monte, mostraram-lhe a região toda que se podia ver, e disseram: Senhora, este é o nosso convento!" (SCom 63).

O mais famoso poema escrito por São Francisco, "O Cântico do Irmão Sol", não é outra coisa do que uma transposição quase litúrgica - em forma de hino - de uma espiritualidade profundamente secular.

Portanto, seria muito proveitoso procurar ler também os outros escritos de Francisco sob um ângulo "secular". Comparemos, por exemplo, a "Regra Não-Bulada" com a "Carta aos Fiéis".

A Regra Não-Bulada é o fundamento da Primeira Ordem, assim como a Carta aos Fiéis é o fundamento da Ordem Terceira. Por via de regra, encontramos poucos trechos na Regra que não poderiam estar também na Carta, e vice-versa. Além disso, muitas das frases são quase idênticas. Isto obriga concluir que tanto a Primeira como a Terceira Ordem, e provavelmente também a Segunda Ordem, são mantidas pela mesma dinâmica espiritual, ou seja, é preciso procurar, encontrar e testemunhar Deus no mundo. Em outras palavras, nossa missão não consiste em outra coisa do que sermos testemunhas de Deus no mundo..

Espaço de estudo

O QUE QUER DIZER O TERMO "SECULAR"?

Antes de prosseguir nesta procura, temos que esclarecer o termo "secular" de modo mais nítido. Pois, neste contexto, essa palavra não é sinônima nem de "ateu", nem de "secularizado" (cf. Lição 14), mas significa bem outra coisa. Trata-se justamente do contrário! Pois, não é possível encontrar a Deus a não ser no âmbito secular, em "todas as coisas deste mundo", como Inácio de Loyola definiu: quer dizer, nas pessoas humanas com suas preocupações e necessidades, suas alegrias e esperanças, nos animais, nas plantas e nas pedras, nas situações concretas e nas circunstâncias sociais, nos acontecimentos e nas experiências da história. Portanto, a pessoa religiosa não precisa ir ao deserto, subir ao cume de um monte ou refugiar-se no mundo interior da alma (apesar de poder fazer isto também!) para procurar a Deus. Não precisa despedir-se do mundo para encontrar a Deus. Este é o ensino da Bíblia, com a qual estamos comprometidos.
Na história da Igreja é possível encontrar ainda uma outra influência predominante: A realidade como constutuída de duas partes desiguais, ou seja, do "mundo", considerado como uma coisa inferior ou mesmo ruim, e do "espírito", considerado o melhor ou até mesmo a única coisa válida e boa.Nesta perspectiva, a única preocupação importante consistiria em ocupar-se exclusivamente das coisas espirituais, mortificando os sentidos, estimulando o poder da alma, fugindo do mundo, entregando-se a Deus. Essa mentalidade cria um dualismo irreconciliável. Os ascetas do cristianismo primitivo saíram das cidades e refugiaram-se no deserto. Seus seguidores procuravam a vida religiosa pela renúncia às suas posses (pobreza), à vontade própria (obediência) e à sexualidade (virgindade). Evidentemente, esses três pontos de cristalização da vida cristã contêm muitos conteúdos positivos e preciosos. Por este motivo, continuam constituindo - para inúmeros cristãos - motivos e perspectivas essenciais, válidas até hoje.Desde o início, porém, estavam penetradas por um espírito dualista, marcado pelo desprezo do mundo.
O dualismo tem ainda outras raízes que não são nem cristãs. Por isso, não convém que seja um motivo condutor (leitmotiv) para a vida franciscana. O mundo real é a criação de Deus, o lugar onde a glória de Deus se manifesta e que resplandecer. Mesmo sendo verdade que Deus habita na alma humana individual, normalmente costuma agir através da história dos povos. Mostrou-se na sarça ardente a Moisés, para usá-lo como instrumento numa obra histórica e salvífica: devia conduzir o povo de uma situação de opressão e dependência à plena liberdade. Deus está presente nos processos de libertação dos povos e no engajamento em prol de mais justiça e paz. Ele se encarnou (Jô 1) e quer continuar presente no mundo até o fim dos tempos (Mt 28,20). Quem deseja seguir a Deus, tem que seguí-lo mundo adentro.

Espaço de estudo


 A alienação da vocação franciscana
Não foi possível manter por muito tempo a índole secular da vocação franciscana. Logo nasceram correntes contrárias que conseguiam reconduzir o movimento de volta por trilhos tradicionais.>> Por exemplo, foram introduzidos na Regra Não-Bulada os três "Conselhos Evangélicos". Pouco antes que essa Regra fosse escrita, a vida religiosa foi reduzida na Igreja à prática dos três assim chamados Conselhos Evangélicos. A Cúria papal estava de tal modo fascinada por eles que insistia em incluí-los também na Regra franciscana. Foi somente uns cinquenta anos depois que a Regra franciscana ficou pronta, que a pobreza, a obediência e a virgindade, conhecidas em seu conjunto como os "Conselhos Evangélicos", ocuparam o lugar central. São considerados elementos essenciais e constitutivos de qualquer comunidade religiosa. De sua parte, os dois grandes teólogos, o franciscano Boaventura e o dominicano Tomás de Aquino, contribuíram para que isto acontecesse. Sem dúvida, essa teologia pertence ao que há de melhor no pensamento da Igreja sobre uma das formas de vida cristã. Todavia, não se deve esquecer que - deste modo - o específico de cada espiritualidade é relegado ao segundo plano.Em vez de testemunhar pela secularidade da espiritualidade franciscana, os próprios franciscanos logo insistiram na distância que os separava do mundo, em função dos Conselhos Evangélicos. A possibilidade de interpretar até os Conselhos Evangélicos de um modo "secular" é uma intuição que ressurge somente em nossos dias. Durante os séculos passados formaram a grande barreira que separava a Primeira e a Segunda Ordem da Ordem Terceira.>> Não demorou muito, e o muro da clausura também chegou a fazer parte da Ordem franciscana. Em vez de morar provisoriamente em certos lugares, assim como Francisco tinha designado, as comunidades franciscanas começaram a habitar em "conventos", constituídos por edifícios sólidos que pareciam verdadeiras fortalezas. A separação do mundo, ou seja, das pessoas do mundo, acabou sendo quase absoluta. Sobretudo para as Clarissas, a clausura se tornou inexpugnável. Existem indicações suficientes para demonstrar que esta evolução foi promovida pela Igreja hierárquica. Sobretudo a Segunda Ordem recebeu uma Regra pelo Cardeal Hugolino, o futuro Papa Gregório IX, que consistia em mais da metade de prescrições que tocam a questão da clausura. Tanto a Primeira como a Segunda Ordem foram adaptadas à vida monástica conhecida até então. Certamente, isto não correspondia às intenções nem de São Francisco, nem de Santa Clara.>> Pouco tempo depois, seguiu-se a "clericalização" da Primeira Ordem. A partir de sua espiritualidade, Francisco era um leigo, mesmo sendo membro da hierarquia eclesiástica pela sua posição como diácono. Foi vontade dele que os seus irmãos pertencessem - como simples leigos - ao grau básico da Igreja (cf. 2Cel 146), mesmo quando eram incumbidos de missões especiais. No meio do povo deviam viver a radicalidade do Evangelho, sendo pobres entre pobres, vivendo a fraternidade em comunidades concretas, anunciando a presença de Deus na situação do dia-a-dia e no mundo inteiro, unindo-se a todos os que crêem e que querem formar a Igreja de Jesus Cristo.>> Com a entrada dos primeiros sacerdotes, por exemplo, do irmão Pedro Cattani, essa intenção foi desrespeitada. A admissão de clérigos desenvolveu-se e multiplicou-se até constituir uma legalidade própria: havia cada vez mais sacerdotes ordenados, até que eles ocupassem todos os n´veis da vida franciscana. Francisco sempre se opôs a essa evolução; mas, logo depois de sua morte, irmãos foram nomeados bispos e chegaram até a ser eleitos Sumos Pontífices.Com isto se completou uma total des-secularização, em detrimento da intenção primitiva de Francisco. Seguramente o Santo não previu essa evolução. Acreditava, pelo contrário, que os sacerdotes que se juntavam à sua Ordem, seriam capazes de submeter-se ao novo espírito - por ele desenvolvido - de doação ao mundo. Em consequência de evoluções modernas em nossos dias, voltam a existir chances reais de poder reencontrar a intenção original de Francisco. >> Do mesmo modo, a Ordem Terceira afastou-se cada vez mais do mundo. Nos lugares em que chegou a formar comunidades estáveis, também começou a erigir muros de separação e clausura. Nos lugares em que membros da Ordem Terceira continuavam vivendo "no mundo", procuravam criar uma espécie de clausura "dentro dos seus corações". Formavam associações piedosas, sem influência significativa na sociedade que as circundava. Até que ponto a Ordem Terceira continua sofrendo dessa imagem é exemplificado pela sua situação em muitas partes do mundo.Apesar - ou até por causa - da obrigação de fazer penitência, que lhe era fundamental, a Ordem Terceira teve certos resultados sociais. Um exemplo é a recusa ao serviço militar e a consequente resistência aos sistemas políticos vigentes.Essas poucas indicações são suficientes para justificar o apelo de retornar às fontes! "Como família franciscana, vamos voltar a redescobrir a nossa espiritualidade original de secularidade; pois, apesar de todas as diferenças, ela continua sendo o traço unificador entre nós".

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Santa Clara e o hálito da Santidade


Hoje no calendário da igreja se comemora o dia de Santa Clara de Assis. Muitos vêem nessa grande e santa mulher, uma coadjuvante da obra de São Francisco, no entanto sua importância vai muito além disso.
            Clara foi uma mulher muito rica, cujos olhos nunca perderam o foco no amor divino. Numa época em que a mulher se limitava a preparar-se para um bom casamento, Clara pensava em algo mais. Sentia em seu coração um chamado que foi se clarificando até o momento em que “um jovem louco de Assis” iniciou o que seria um dos movimentos que mais arejou e transformou a igreja de Cristo. Ao desnudar-se diante do Bispo de Assis e declarar que daquele dia em diante teria como único pai aquele que está nos céus, Francisco desnudou também o coração de Clara para as verdades eternas. Foi apenas uma questão de tempo até que Clara seguisse os passos do “pobrezinho” e se juntasse a ele no sonho de uma vida cristã simples, focada nos olhos do outro e tendo os mais pobres como referência maior.
            No entanto, Clara não apenas aderiu ao chamado de Cristo através do novo carisma nascente, ela tornou-se uma importante bússola para o movimento, apoiando São Francisco em seus momentos mais difíceis. Foi ela aquela que o fortaleceu na tarefa de consolidar o carisma franciscano, sugerindo que Francisco continuasse itinerante, ao invés de recolher-se a clausura, não abandonando a contemplação, mas tendo o mundo como igreja. Foi ela aquela que o apoiou e fortaleceu quando Francisco, em profunda crise, achava que sua vocação era equivocada e que havia errado em tudo.
 Sobre esse aspecto, é bom que se diga que costumamos ver os santos como pessoas que já nascem com a aura da pureza e santidade, desconsiderando os imensos sacrifícios que fazem para alcançar os méritos que hoje reverenciamos nos altares. A vida de São Francisco e de Santa Clara costuma ser cercada de romantismo, como se eles fossem pessoas imaculadas, cuja vida fosse marcada por grande luz, do começo ao fim. No entanto, quando nos debruçamos sobre as suas histórias, imunizados de um olhar desatento, percebemos que ambos viveram momentos de insegurança, de dúvida, incompreensão e dor.
            Quando apenas percebemos o aspecto da santidade sem perceber a nuance humana que o permeia, tendemos a ser intolerantes e duros. Olhar o santo ou a santa com um ser humano em processo intenso rumo à experiência divina, tendo no percurso, altos e baixos, alegrias e tristezas, milagres e silêncio é de suma importância para que aprendamos a seguir os seus passos rumo a Cristo com mais tolerância e amor cristão.
            Francisco teve em Clara um suporte seguro para trilhar o seu duro caminho e ela, considerando-se uma humilde plantinha de seu jardim, percebeu a importância de seguir os seus passos, sem perder o foco maior que é Jesus.

Rio de Janeiro, em 11 de agosto de 2011. Dia de Santa Clara de Assis.

Paz e bem!

Frei Sidney Pinto Guedes