Franciscanismo

Total de visualizações de página

Pesquisar este blog

sexta-feira, 13 de março de 2009

Excomunhão

Eu não sou a favor do aborto, mas no caso da menina, eu me pergunto: o que teria feito Jesus. Credito que não teria escutado nem o juiz nem o arcebispo. Ele teria ido ver a menina para cuidar dela. E escutar naquele momento aquilo que a Vida Lhe inspira. É claro que se a vida da mãe e a vida das crianças estão em perigo é preciso escolher que um dos dois sobreviva. Depois, é preciso escutar o sofrimento desta menina. Mas nunca julgar, excomungando, apenas como Igreja, escutar a dor ser solidário com a dor, tentar amenizar a dor e o sofrimento. Não sei se devemos fazer isso ou aquilo diante do estupro e do aborto, mas sei que eu devo ser solidário com quem sofre, sempre que alguém sofre agir com compaixão, misericórdia e solidariedade, é isto que Jesus pede de mim, sempre, como ministro da bencao. Trata-se de escutar a pessoa que está sofrendo e de escutar aquilo que a vida deseja nela porque a vontade de Deus é a vontade da Vida que quer viver. E como não acrescentar mais sofrimento? E aqui, o que pode nos parecer dramático é que, com a excomunhao, é acrescentado culpa ao sofrimento, acrescentado mais mal ao mal. No Evangelho, nós nunca vimos Jesus excomungando alguém. 
E, primeiro, será que é possível excomungar alguém? O diabo não pode nos separar de Deus se permanecemos fiéis a Presença de Deus. Se o diabo não pode nos separar de Deus, um arcebispo também não.
Mas eu confesso que há alguma coisa que eu não compreendo nisto tudo: é este encadeamento de excomunhões. Porque se excomunga quem já se esta sofrendo? Se isto não e humano, e menos ainda cristão. 
Mas vocês podem sentir que não é essa a questão. Nenhuma igreja, nenhum ser humano têm o poder de excomungá-los. Nós não podemos separar um ser da Fonte do Ser. Não podemos separar a consciência da Fonte da Consciência, mas podemos envenenar a sua vida. Nós podemos perturbar a sua vida. E é verdade que isso é grave. 
E, normalmente, a função da Igreja, Padres e Bispos, não é a de envenenar a vida, mas a de curar o sofrimento, de aliviar a dor, de aliviar a dor dessa menina, e de aliviar a dor daqueles que a cercam. E não culpabilizar aqueles que estão tentando ajudá-la, mas, pelo contrário, ajudá-los no seu discernimento para saberem o que é melhor para essa menina; o que é melhor para que a vida a leve para a morte, para a pulsão de morte, pulsão de destruição. Essa é a função da igreja. Mas não é a sua função condenar, excomungar. Senão ela se torna uma instituição como qualquer outra que está a serviço do poder. E o poder sobre as almas é algo muito perigoso. É mais perigoso do que o poder sobre os corpos. 
É por isso que sempre é bom voltarmos aos Evangelhos ou, simplesmente, voltar ao nosso coração. E não nos deixarmos impressionar por leis externas, mesmo as leis religiosas. A lei a qual obedecemos é a lei da Vida. E o espírito que está em nós é o Espírito da Vida. É isso que dirá São Paulo. Não dependemos mais de leis externas. Trata-se de escutar a vida em nós, de escutarmos a luz em nós, de escutar o amor em nós, de escutar a Presença do Eu Sou que É porque ali está o discernimento. Mas, algumas vezes, é preciso coragem para encarar estas instituições que, talvez, estejam se esquecendo essa dimensão do Ser. Muitas vezes, estas instituições são vítimas de suas próprias ideologias. É interessante escutar os argumentos do Arcebispo de que não devemos destruir a vida. Mas vocês podem sentir que a sua teoria está cortado da realidade. Seus grandes princípios, que não são ruins, esquecem daquele caso em particular. E pra Deus existem apenas casos particulares. Jesus teria morido apenas para salvar a vida daquela menina... 
E não podemos legislar de uma maneira geral porque o amor é sempre o amor
por um caso em particular. O que é verdadeiro para um pode não ser verdadeiro para o outro. E então, que a nossa prática de meditação nos torne atentos a essa via interna, a essa lei interna, que não julga a priori, nem com princípios políticos, nem com princípios médicos, nem com princípios religiosos, mas que está em contato com a realidade; que escuta o que a Vida em outra pessoa e o que a Vida em nós pede. E ama apenas, e tenta amar na mesma intensidade na qual que Jesus amou e ama.
Talvez, essa seja a questão para colocarmos um ato justo, uma condição que deixe o nosso coração em paz mesmo que, a nossa volta, nós não compreendamos. É importante o critério dessa paz interna, esse sinal de que existe uma unidade no interior de nós mesmos. 
Penso nas palavras de São Serafim de Sarov. Ele diz: Encontre a paz no interior de você mesmo e uma multidão será salva ao seu lado.
Ache a paz no interior de você mesmo e você descobrirá o gesto justo que não vai ser uma ideologia, ou os grandes princípios, mas o respeito pela Vida na sua fragilidade e da sua vulnerabilidade.
Acho que disse muito sobre todas essas questões, mas o que eu acho mais importante é que cada um descubra a resposta que vêm ao seu interior. Ninguém tem o direito de pensar no seu lugar. O papel de um ensinamento, o papel de uma comunidade ou de uma igreja não é dizer o que devemos fazer, aquilo que é bom e o que é ruim, mas de nos dar elementos para esclarecer o nosso discernimento, para que nós nos tornemos inteligentes, uma inteligência esclarecida e iluminada pela compaixão. 
E assim não haverá mais excomungados, nem o outro, diferente de mim será mais inimigo, pois ele já terá sido amado, acolhido. e o demonio, que a Igreja diz combater tera sido vencido, dentro dela mesma. Dentro de nos mesmos.
E a Biblia, o livro da Vida, que revela um Deus de amor, nao sera mais usada para falar que Deus quer excomungados...
Pois se eu nao sou capaz de perceber o outro diferende de mim, na sua diferenca, tambem como filho de Deus, eu preciso repensar meus valores reliogos e de fe crista e minha atuacao dentro do ministerio acerdotal.
 
Pe Fr Gelson, oasf

quinta-feira, 5 de março de 2009

Os últimos momentos de Jesus no alto da cruz (Mc 15, 22-41 e paralelos)

Introdução

Durante a Semana Santa a liturgia prevê, no Domingo de Ramos, a leitura da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo Mateus e na Sexta-Feira Santa a de João. As narrativas da Paixão têm basicamente o mesmo esquema e conteúdo nos quatro evangelhos, embora cada evangelista tenha algo de próprio no conteúdo, na disposição do material e nos acentos teológicos próprios. No presente estudo, "Os últimos momentos de Jesus no alto da cruz", vamos analisar apenas uma pequena parte da narrativa da Paixão: 
- a crucifixão de Jesus: Mc 15,22-32; Mt 27,33-44; Lc 23,33-43; Jo 19,17-24;
- a morte de Jesus: Mc 15,33-41; Mt 27,45-55; Lc 23,44-49; Jo 19,29-37;
Alguns pesquisadores pensam que o primeiro evangelho, o de Marcos, tenha começado a ser escrito pela parte final, isto é, pela última semana de Jesus em Jerusalém. Marcos seria um relato da paixão com uma ampla introdução. Em outras palavras, o evangelho se desenvolveu a partir da narrativa da paixão de Cristo, já existente, ao menos em forma oral. A pregação inicial feita pelos apóstolos aos poucos deve ter criado esquemas fixos. Tais esquemas serviam para fazer o querigma, ou anúncio ao povo, isto é, aos judeus que ainda não criam em Jesus e, depois, aos pagãos. O esquema destas pregações corresponde basicamente aos futuros evangelhos. Destacamos apenas dois textos:
- 1Cor 15,3-5: "Eu vos transmiti, em primeiro lugar, o que eu mesmo recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as escrituras; que apareceu a Cefas e depois aos Doze".
- At 10,36-38: "Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, começando pela Galiléia, depois do batismo pregado por João. Como Deus ungiu Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder. Como ele andou fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com ele". 
Como se vê, tanto a anúncio de Paulo como o do discurso de Pedro começam pela recordação da morte de Jesus. No discurso de Pedro, se o v. 36 for invertido em sua seqüência, temos o esquema geográfico do evangelho de Marcos: "o que aconteceu na Judéia" (Mc 11,1-16,8), "começando pela Galiléia" (Mc 1,14-10,52), "depois do batismo pregado por João" (Mc 1,1-13). Tanto o querigma primitivo como a celebração da ceia nas casas pode ter contribuído para a formulação das narrativas da paixão/ressurreição de Jesus. A obediência à ordem de Jesus, "fazei isto em memória de mim" (cf. 1Cor 11,23-24: Lc 22,19), foi a situação vital que favoreceu a elaboração, inicialmente, do relato da paixão/ressurreição e depois do restante do evangelho. Não é de estranhar que o relato da ceia tenha se tornado uma introdução ao relato da paixão propriamente dita.
Com o querigma, feito aos de fora, os cristãos precisavam justificar por que anunciavam e seguiam um Messias crucificado, "escândalo para os judeus, loucura para os gregos" (1Cor 1,23). Dentro da comunidade reunida para celebrar a ceia ou para a catequese precisavam entender, à luz das Escrituras, este "escândalo da cruz"; precisavam entender, à luz dos profetas, "que era necessário que o Cristo sofresse tudo isso para entrar na sua glória" (Lc 24,25-26). Daí a centralidade que as narrativas da paixão/ressurreição ocupam nos Evangelhos. 
Marcos parece ter sido o primeiro a reunir e ordenar o material da história da paixão, antes contado oralmente. Depois de Marcos, Mateus e Lucas refundiram seu relato da paixão segundo suas perspectivas teológicas próprias. De fato, em nenhuma outra parte dos evangelhos há tanta coincidência dos evangelistas como nas narrativas da paixão, sobretudo, a partir da prisão de Jesus (cf. Mc 14,43 e paralelos) e, particularmente, da história da crucifixão. 
Apresentamos um quadro do esquema básico da narrativa da crucifixão e da morte de Jesus na cruz, nos quatro evangelistas:

 Mc 15,22-41Mt 27,33-56Lc 23,33-49Jo 19,17-30
A crucifixãov. 22-27(28)v. 33-38v. 33-34v. 18-24
Os insultos e os dois bandidosv. 29-32v. 39-44v. 35-43 
Maria junto à cruz e palavras de Jesus   v. 25-27
Sinais precursores da morte de Jesusv. 33v. 45v. 44-45 
Palavra de Jesus e intervenção do soldadov. 34-36v. 46-49 v. 28-29
Último grito e morte de Jesusv. 37v. 50v. 46v. 30
Ocorrências após a morte de Jesusv. 38-39v. 51-54
v. 47-48
 
Mulheres e outros que estavam presentesv. 40-41v. 55v. 49 

1. A crucifixão

Marcos, na cena da crucifixão menciona o local (Gólgota), a oferta de vinho com mirra, a repartição das vestes por sorteio, a inscrição sobre a cruz e, por fim, os dois bandidos que com Jesus foram crucificados1 . Mateus menciona os mesmos fatos, precisando que o vinho foi misturado com fel e que havia ali guardas sentados, vigiando Jesus. Algumas mulheres, que seguiram Jesus desde a Galiléia (cf. Mc 15,41), provavelmente, prepararam uma bebida que causava torpor, como era costume oferecer aos condenados. Em Pr 31,4-6 se aconselha que os governantes se abstenham de vinho e licores, "para não esquecer as leis e descuidar do direito de todos os pobres", mas recomenda: "Que se dê licor ao que vai morrer e vinho aos amargurados". Jesus, porém, se nega a beber, para enfrentar o sofrimento e a morte conscientemente. No Getsêmani, Jesus estava disposto a beber o cálice do sofrimento até o fim (Mc 14,36).
A repartição das vestes dos condenados à morte entre os que executavam a sentença estava prevista nas leis romanas. Mas a Igreja primitiva, que lia o Sl 22 para expressar a paixão de Jesus, viu no sorteio das vestes o cumprimento de uma profecia: "Repartem entre si minhas vestes e sobre minha túnica lançam a sorte" (Sl 22,19). João diz que as vestes foram divididas em quatro partes pelos soldados e somente a túnica sem costura foi sorteada.
Lucas omite na cena da crucifixão a oferta da bebida e a inscrição sobre a cruz, definindo o motivo da condenação. Lembra, porém, que junto com Jesus foram crucificados dois "criminosos" (em vez de bandidos de Mt e Mc), talvez relendo Is 53,12: "entregou sua vida à morte e se deixou contar entre os criminosos". Lucas é o único a citar, no contexto da crucifixão, uma oração de Jesus pedindo perdão: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem" (23,34). "A primeira palavra de Jesus na cruz foi uma palavra de perdão" (Lagrange). Este pedido de perdão poderia se referir aos soldados romanos. Mas, à luz de At 3,17.19 e da oração de Santo Estevão (At 7,59-60), é mais provável que Jesus estivesse pensando nas autoridades judaicas que causaram sua condenação. No momento supremo de sua vida e missão, Jesus dá o exemplo do perdão do qual falava (Lc 6,27-36; 17,3; cf. Is 53,12) e incluiu na oração do Pai Nosso (11,4).
João cita a oferta da bebida só mais tarde (19,29), mas insiste na inscrição "Jesus Nazareno, o rei dos judeus", escrita em hebraico, grego e latim. Os sumos sacerdotes reclamaram com Pilatos e queriam que a inscrição fosse modificada: em vez de "Jesus Nazareno, rei dos judeus" para "eu sou o rei dos judeus". Mas Pilatos respondeu com a famosa frase: "O que escrevi, está escrito". Jesus foi acusado de pretender ser um messias, rei dos judeus. Mas já no processo João rebate esta acusação: o reino de Jesus não é deste mundo (Jo 18,33-38; cf. Mc 15,2 e paralelos)].

2. Os insultos e os dois bandidos

Marcos e Mateus dividem os que insultam Jesus na cruz em três grupos: os que passavam perto do Gólgota, os sumos sacerdotes, escribas e anciãos e, finalmente, os dois bandidos crucificados. Em Marcos, os insultos giram em torno do título Messias-Rei. Os passantes retomam a falsa acusação feita contra Jesus de que Jesus prometeu destruir o Templo e desafiam-no a descer da cruz, salvando-se a si mesmo (Mc 14,58; 15,19), já que é tão poderoso; ao dizer isso eles "movem a cabeça", como no Sl 22,8 e em Lm 2,15. De fato, Jesus havia salvado muitas pessoas, curando-as. Mas também havia dito: "Quem quiser salvar sua vida vai perdê-la..." (Mc 8,35). Os escribas e sumos sacerdotes repetem o insulto e acrescentam que, se o "Cristo, rei de Israel", descesse da cruz, até eles haveriam de crer nele (Mc 15,32; Mt 27,42b). Lucas afirma que os soldados, ao oferecerem vinagre a Jesus, diziam: "Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo", lembrando que acima da cabeça de Jesus estava escrito: "Este é o rei dos judeus" (Lc 23,36-38).
Os insultos dirigidos a Jesus na cruz lembram Sb 2,17-20 e Sl 22,7-9. Mesmo desafiado, Jesus nega-se a usar de seu poder para descer da cruz. Já na tentação do deserto (Lc 4,3.9) "Jesus havia feito sua opção definitiva entre demonstrar seu poder e entregar-se totalmente em obediência ao Pai" (Hendrickx: 1986, p. 155).
Marcos e Mateus dizem que também os dois bandidos crucificados participavam dos insultos. Lucas distingue: Apenas um dos criminosos blasfemava, dizendo: "Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós" (Lc 23,39). O outro, porém, o repreendeu, dizendo que, se eles mereceram o castigo, Jesus era inocente e lhe fez um pedido: "Jesus, lembra-te de mim quando vieres como rei". E Jesus respondeu: "Ainda hoje estarás comigo no paraíso". O criminoso pensa, como os judeus em geral, na felicidade futura. Para Jesus, porém, a esperança da salvação futura é uma salvação que já se experimenta hoje (cf. Lc 2,11; 4,21; 19,9). No Antigo e no Novo Testamento, a essência da felicidade é estar com Deus.

3. Os sinais precursores da morte de Jesus

Marcos e Mateus citam dois sinais precursores: as trevas e o véu do Templo que se rasga. As trevas teriam coberto sobre toda a terra desde a hora sexta, meio-dia, até a hora nona, três da tarde. Não se trata de procurar uma explicação natural, como um eclipse ou o vento siroco, que pode trazer tanta poeira do deserto a ponto de fazer escurecer o céu. O fenômeno sugere um efeito cósmico da morte de Jesus e faz parte da linguagem escatológica do dia do Senhor e do julgamento divino, por ocasião da vinda do Filho do Homem: "Naqueles dias... o sol escurecerá" (Mc 13,24). Ou como diz Amós: "Acontecerá naquele dia que farei o sol se pôr em pleno meio-dia e escurecerei a terra em um dia de luz" (Am 8,9). Em João a paixão é também entendida como um julgamento divino: "Agora é o julgamento do mundo" (Jo 12,31).

4. Palavras de Jesus e intervenção do soldado

Apenas Marcos e Mateus dizem que Jesus, com voz forte gritou: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" O grito de Jesus, citando o Sl 22,1, expressa a radical solidão do sofrimento e morte de Jesus. Não se trata de um grito de desespero de um moribundo, mas inclui também uma expressão radical de entrega a Deus, como se expressa na ação de graças e certeza da proteção divina da parte final do Sl 22,22-31. Neste sentido, alguns pensam que Jesus estivesse rezando o Salmo 22. Talvez para ressaltar o aspecto positivo e confiante Lucas, omite este grito. O grito de Jesus chamou a atenção dos soldados e um deles, entendo mal a expressão "meu Deus" (Eli ou Eloí), disse: "Vede! Ele está chamando Elias". Elias era considerado o precursor do Messias (cf. Ml 3,23; Mc 9,11-13). Foi arrebatado ao céu num carro de fogo (2Rs 2,11-14) e se acreditava que, ao ser invocado, viria resgatar o justo necessitado.
Com Lucas, João omite o grito de abandono do Sl 22,1; em vez disso, mostra que nem todos abandonaram o Mestre: Junto à cruz "estavam de pé, sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena", além do discípulo amado (Jo 19,25-27). João, em vez de um Jesus abandonado pelo Pai, mostra um Jesus preocupado com o possível abandono de sua mãe, após sua morte. Por isso, com as palavras "mulher, aí está o teu filho" e "aí está tua mãe", confia-a aos cuidados do discípulo amado.

5. A morte de Jesus e repercussões

Depois desta cena, Marcos e Mateus lembram que Jesus deu mais um forte grito e expirou. Em Lucas, que omitiu o Sl 22,1 ("meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?"), antes de expirar, Jesus diz: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito", citando o Sl 31,6. Como nos salmos, Jesus aparece como o justo que sofre, mas se entrega confiante a Deus e é reabilitado. João mostra um Jesus consciente até o fim; por isso, "para cumprir plenamente a Escritura", diz: "Tenho sede". Neste momento, um dos soldados, molha em vinagre a esponja presa numa vara e a aproxima da boca de Jesus. Ao contrário de Mc 15,23 e Mt 27,34, Jesus provou o vinagre: "Depois de provar o vinagre, Jesus disse: 'tudo está consumado'. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito" (Jo 19,28-30).
A expressão "tenho sede", no contexto do vinagre servido, lembra o lamento do justo sofredor do Sl 69,22: "Puseram veneno no meu alimento, em minha sede deram-me a beber vinagre". A palavra "tudo está consumado" expressa o desejo profundo de Jesus de cumprir a vontade do Pai. A cena de Jesus e a samaritana junto ao poço de Jacó já expressava muito bem este desejo. De fato, embora Jesus tenha pedido água para a samaritana acabou não bebendo água; e, quando os discípulos lhe oferecem pão, Jesus diz: "Meu alimento é completar é fazer a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra" (Jo 4,34). Do mesmo modo, na hora da prisão, Jesus manda Pedro recolher a sua espada e diz: "Será que não devo beber o cálice que o Pai me deu?" (Jo 18,11). Por outro lado, como em Lc 23,46, em João ninguém tira a vida de Jesus. É ele que "entrega" o seu espírito: "O Pai me ama porque dou minha vida para de novo a retomar. Ninguém a tira de mim. Sou eu mesmo que a dou" (Jo 10,17-18).

6. Ocorrências após a morte de Jesus

Marcos mostra um duplo significado da morte de Jesus. A ruptura do véu (v. 38) tem um significado em relação ao povo judeu e a confissão do oficial romano (v. 39) se relaciona com os gentios. Em Mateus e Marcos o véu do Templo se rompe após a morte de Jesus, enquanto em Lucas, antes da morte. No Templo havia dois véus. Um véu exterior, que separava o Santo do pátio exterior (Ex 26,37; 38,18) e um véu interior, que separava o Santo do Santíssimo2 . Em qualquer caso, se os evangelhos sinóticos mencionam a ruptura do véu (interior ou exterior) no contexto do momento da morte de Jesus é porque isso tinha um significado simbólico mais profundo. Poderia significar que, com a morte de Jesus, o serviço do Templo fica abolido e sua destruição está próxima. Outros vêem na ruptura o fim da barreira entre Deus e o homem (cf. Hb 9,1-12.24-28; 10,19-25). Outra possibilidade seria que, com a morte de Jesus, acaba a separação entre judeus e gentios (cf. Ef 2,11-22). Em suma, a morte de Jesus marca o fim da economia do Antigo Testamento e abre o caminho da salvação para todos os povos. 
Segundo Mateus, a ruptura do véu foi acompanhada de outros fenômenos cósmicos: "A terra tremeu e fenderam-se as rochas. Os túmulos se abriram e muitos corpos de santos ressuscitaram. Eles saíram dos túmulos, depois da ressurreição d'Ele, entraram na Cidade Santa e apareceram a muitos" (27,51b-3). A descrição se inspira no motivo apocalíptico da ressurreição, prevista para a era messiânica (cf. Ez 37,1-14). Na linguagem apocalíptica o terremoto acompanha a descrição de teofanias, ou manifestações divinas, como sinal de uma nova ação salvífica (cf. Jl 2,10; Ag 2,6.21).
Por outro lado, a ruptura de rochas também acompanha a própria ação divina (Is 48,21; Na 1,5-6). Tumbas que se abrem marcam a descrição da ressurreição do povo em Ez 37,12s. "Santos" no Sl 34,9 é sinônimo de fiéis. Os rabinos chamam "santos" os que observam os mandamentos divinos. Em Mt 27,52 talvez se refira a personagens importantes do Antigo Testamento. A ressurreição dos mortos é o ato salvífico escatológico de Deus por excelência. Jerusalém com seu templo era o lugar da presença de Deus. Aqui, a expressão "Cidade Santa" indica a Jerusalém celeste (Hb 11,10.16; 12,22; Ap 21,2.10; 22,19. Enfim, todos estes sinais não devem ser entendidos literalmente, mas são afirmações teológicas para expor o significado da morte de Jesus. "Depois da ressurreição d'Ele", talvez seja um acréscimo para deixar claro que "Cristo ressuscitou dos mortos como o primeiro dos que morreram" (1Cor 15,20) e na sua ressurreição se baseia a fé na ressurreição dos mortos (1Cor 15,12-19).
À vista destes fenômenos cósmicos, Marcos e Mateus trazem a confissão do centurião romano: "Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus". Marcos põe na boca do centurião aquilo que mais tarde faria parte da confissão cristã a respeito de Jesus. Com esta frase o centurião caracteriza a vida inteira de Jesus, até sua morte, como a de filho de Deus (cf.Mc 1,1 e 15,39). A expressão "filho de Deus" ainda não é o que entendemos por " segunda pessoa da Trindade", definição que foi feita apenas em 325 dC, no Concílio de Nicéia. No Antigo Testamento o povo de Israel era chamado filho de Deus: "Quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei o meu filho" (Os 11,1). O rei, como representante do povo, era também chamado "filho" de Deus (2Sm 7,12-16). À luz do Sl 2,7, 'filho de Deus" pode ser entendido mais em sentido messiânico. A confissão do centurião, de qualquer forma, vai mais longe que a de Pedro, que reconhece em Jesus apenas o Cristo (Mc 8,29) e afirma o que o sumo sacerdote considerou como blasfêmia (Mc 14,64). Em João, o próprio Jesus, ao discutir com os judeus, diz: "Se a Lei chama deuses àqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus - e a Escritura não pode falhar - como podeis dizer que blasfema aquele que o Pai santificou e enviou ao mundo só porque eu disse: 'Sou Filho de Deus'" (Jo 10,35-36). Marcos quer deixar claro à comunidade cristã que somente quando Jesus é visto como aquele que sofreu, morreu, ressuscitou e há de vir de novo, é que pode ser chamado filho de Deus em sentido próprio (Hendrickx: 1986, p. 130-131).
Mateus coloca o reconhecimento de que Jesus era filho de Deus na boca do centurião e dos guardas que com ele estavam. Esta confissão é acompanhada pelo temor diante de uma manifestação divina: "ficaram com muito medo" (27,54: 9,8; 17,6). Em Mateus Jesus é reconhecido como "filho de Deus" já antes pelos discípulos, quando Jesus caminha sobre as águas ao encontro dos discípulos em meio ao mar agitado (Mt 14,33). Em Cesaréia de Filipe, Pedro também confessa que Jesus é "o Cristo, o Filho do Deus vivo" (16,16). E agora, junto à cruz, ao reconhecer que Jesus era filho de Deus, enquanto os chefes do povo o rejeitavam, o centurião romano torna-se um exemplo de profissão de fé para a comunidade cristã de Mateus. Jesus já havia elogiado esta fé num centurião romano que pedia a cura de seu servo: "Em ninguém de Israel encontrei tanta fé" (Mt 8,10-12). 
Em Lucas o centurião diz: "Realmente, este homem era um justo". Pilatos e o criminoso declararam que Jesus era inocente. O texto de Lucas parece sugerir que o centurião, tendo acompanhado todo o processo diante de Pilatos (23,2-25) e vendo a acontecido, reconhece que Jesus não tinha ambições políticas de que era acusado, mas era um justo. Em Lucas, o centurião reconhece que Jesus era um justo enquanto "glorificava" a Deus. Em outras ocasiões, em Lucas, o "louvor" ou a "glorificação" é a resposta cristã diante de palavras e gestos de Jesus. A glorificação é a resposta de quem crê que Deus interveio de modo decisivo na história da salvação (Lc 1,42.64; 2,20.28; 17,15, etc.). O título "justo" lembra o sofredor que é reabilitado como justo (Sl 31,19). Para Lucas "justo" é um título messiânico (At 3,14-15; 3,14; 7,52; 22,14) e lembra o servo sofredor de Isaías: "O justo, meu servo, justificará a muitos e tomará sobre si as suas iniqüidades" (Is 53,11). Além das palavras do centurião, Lucas acrescenta que a multidão, testemunha do que aconteceu, volta arrependida, "batendo no peito". Pode ser uma alusão a Zc 12,1.10 onde, diante do "transpassado" que morre, o povo se arrepende e faz lamentação. Pode-se também ver uma antecipação do dom do Espírito e do perdão, conforme At 2,38: "Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para o perdão dos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo".

7. Mulheres e outros que estavam presentes

No jardim de Getsêmani, quando Jesus é preso, todos os discípulos o abandonam. Um discípulo jovem tentou segui-lo, mas também acaba fugindo (Mc 14,50-51). Pedro, que jurara permanecer fiel, acompanha Jesus, junto com outro discípulo, até a casa do sumo sacerdote, mas acaba negando que conhece o Nazareno. João é o único que fala de um discípulo, o discípulo amado, presente junto à cruz. Marcos e Mateus, com algumas variantes, dizem que as mulheres presentes eram muitas, seguiam Jesus e o serviam desde a Galiléia, e mencionam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, a mãe dos filhos de Zebedeu (Mt) e Salomé (Mc).Lucas não cita nomes, mas, em outro lugar, identifica pelo nome estas mulheres que seguiam e serviam a Jesus desde a Galiléia: Maria Madalena, Joana, mulher de Cuza e Susana, além de "muitas outras" (cf. Lc 8,2-3).

Acrescenta, porém, que estavam junto à cruz "todos os conhecidos de Jesus". Logo, também os onze discípulos estariam presentes, à distância, como testemunhas da morte de Jesus.O vínculo entre o mestre e os discípulos não estaria de todo rompido. De fato, Lucas omite a fuga dos discípulos e lembra que "Pedro o seguia à distância" (Hendrickx: 1986, p. 163-164). João é o único a dizer que "junto à cruz estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena", além do discípulo que Jesus amava (Jo 19,25-26).
A presença das mulheres junto à cruz é mencionada em Marcos, Mateus e Lucas porque elas exercem uma função importante no sepultamento e no encontro do túmulo vazio (Mc 15, 47-16,8; Mt 27,61; 28,1-10; Lc 23,55-24,1-11).





Conclusão

Como vimos acima, Marcos recolheu materiais do relato da paixão, anteriores a ele, e foi o primeiro a organizá-los, dando-lhes alguns acentos teológicos próprios. Mateus e Lucas (e de certa forma João) respeitaram estes dados da tradição oral e acolheram a organização que lhes foi dada por Marcos. Também eles têm seus acentos teológicos próprios.
Marcos tem uma reflexão cristológica própria. Jesus é um inocente, crucificado como Messias, "rei dos judeus" (Mc 15,2.9.12.18.26). Provavelmente, ao falar do silêncio de Jesus e de sua inocência, esteja fazendo uma alusão aos cânticos do Servo Sofredor (Is 53,7.9). Realça o contraste entre Jesus e Barrabás, e a crescente solidão e rejeição de Jesus. No seu relato fica, também, clara a responsabilidade dos judeus (Mc 15,3-14). O julgamento de Jesus diante de Pilatos é um julgamento do rei dos judeus, que silencia enquanto os judeus o acusam (Hendrickx: 1986, p. 92-93).
Mateus dá também destaque ao aspecto cristológico, insistindo na fé e no título "filho de Deus" (Mt 27,40.43.54). O relato de Mateus tem uma característica fortemente eclesial (Hendrickx: 1986, p. 149). A morte de Jesus marca o fim da antiga aliança e o começo do novo povo de Deus (Mt 27,51-54). Com Marcos, frisa também ferrenha oposição dos chefes judeus e sua responsabilidade pela morte de Jesus.
Lucas dá um realce ao amor de Jesus pelos pecadores, tanto na cruz como durante seu ministério público, e à firma confiança na proteção do Pai (Hendrickx: 1986, p. 164). Jesus não é alguém abandonado e rejeitado por todos. No caminho da cruz, recebe a solidariedade de Simão Cireneu, é seguido por uma multidão de povo e mulheres, que se compadecem dele e as quais Jesus exorta. Em lugar de "bandidos" que amaldiçoam a Jesus, aparece um "criminoso" arrependido e que recebe a promessa de estar na presença de Deus (Lc 23,39-43). Lucas substitui o grito de abandono de Jesus - "meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" (Sl 22,2) - pelo de confiança: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito" (Sl 31,6). Lucas não fica no aspecto escatológico dos sinais após a morte de Jesus, mas acentua a relação pessoal de um centurião que declara Jesus como um justo e da multidão que, arrependida, bate no peito (Lc 23,47-48).
Como vimos, cada um dos evangelistas tem o seu modo próprio de contar a paixão. Que eles nos inspirem a meditarmos e vivermos com maior profundidade a paixão e morte de Jesus, nas celebrações da Semana Santa.

Bibliografia:
BURNIER, Martinho Penido. Perscrutando as Escrituras, fasc. IX: Paixão e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo (III). Círculos Bíblicos. Petrópolis: Ed. Vozes, 1971, 203 p.
GOURGUES, M. Jesus diante de sua paixão e morte. Cadernos Bíblicos, 24. São Paulo: Paulinas, 1985, 80 p.
HENDRICKX, Herman. Los relatos de la pasión. Madrid: Ediciones Paulinas, 1986, 228 p.
KONINGS, Johan. Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da "fonte Q". Bíblica Loyola, 45. São Paulo: Ed. Loyola, 2005.

Notas de Rodapé

1- Na análise dos textos de Marcos, Mateus e Lucas seguimos, de modo geral, a exposição de Herman Hendrickx. Los relatos de la pasión. Estúdio sobre los evangelios sinópticos. Madrid: Ediciones Paulinas, 1986.

2- "Santo" era o espaço no tabernáculo (Ex 26,23) e no templo de Salomão (1Rs 6,3.5.17.33) que dava acesso ao "Santo dos Santos". No "Santo" ficava o altar dos perfumes, a mesa dos pães apresentados e dez candelabros (um candelabro de sete braços no templo de Herodes). No "Santo dos Santos" estava a arca da aliança até a destruição do Templo em 587 aC. Somente o sumo sacerdote, uma vez por ano, no Dia da Expiação, podia entrar no "Santo dos Santos" (Lv 16,2; Hb 9,7-10). No templo de Herodes dois véus separavam o "Santo" do "Santo dos Santos".

Ludovico Garmus

Um pouco de espiritualidade

Status quaestionis: Tanto quanto a Psicologia, também a Espiritualidade, como ciência e florescimento da vida, pensa no ser humano como destinatário privilegiado e possível casa da felicidade. Seu quartinho especial chama-se coração. 
Grandes Mestres Espirituais sempre se fizeram sensíveis a essa profunda aspiração do cora-ção humano: ser feliz. Esmeraram-se em refletir sobre ela, em definir-lhe a natureza, denunciando possíveis engodos, que chamaram de tentações, e propondo comportamentos pertinentes, que chamaram de virtudes, à sua realização.

Na Espiritualidade concentra-se o que de melhor conhecemos da sabedoria humana. De Jesus, seu mais ínclito expoente, diz-se que foi a encarnação e revelação da sabedoria de Deus. Nele se deram as mãos duas realidades, a saber: o paraíso perdido, que ele reabriu com seu sangue, e as promessas do Reino dos Céus, que ele anunciou com palavras e con-firmou com milagres.

Se, em Jesus, a vida espiritual conheceu sua mais excelente expressão, não deixou, igualmente, de brilhar em grandes e conhecidos homens ou mulheres que criaram escolas de espiritualidade e em pessoas simples e anônimas que foram e são, indiscutivelmente, mestras da arte de viver espiritualmente.

É escusado admitir que há muitas Espiritualidades, além da cristã. Todas elas, enquanto humanas, são legitimamente sadias e caminhos a serem seguidos e perseguidos com denodo e segurança.

Como pessoas, estamos abertos, na admiração, a todas experiências espirituais. Não é pre-ciso ser cristão para dizer que se deve rezar sem neuroses, morrer sem desespero e não cul-par Deus pelo que nos acontece. Não é também preciso ser cristão para saber o quanto é bom perdoar, corrigir o que está errado e não idolatrar o diabo.

Como cristãos, encareceremos, com alegria, a importância de alimentar os sentimentos de Cristo, almejando o ideal duma santidade sem rabugices e refletindo sobre os dolorosos e beatificantes caminhos de crer na Palavra de Deus, sem parcimônia e de olhos fechados.

Não dá para ter espiritualidade cristã sem ter em Cristo o mestre de nosso itinerário espiritual, sem ter fé em suas palavras ou nos destinos humanos a quem ele serviu e exaltou, sem fazer ascese por amor a ele e ao seu Reino. Quando alguém, conscientemente, se entrega ao itinerário do crescimento espiritual, mudam-se seus horizontes e aprofundam-se seus compromissos com o que lhe é superior.

A verdadeira Espiritualidade, assim como a boa Psicologia, tem, no fundo, um discurso que aponta para o paraíso perdido e apresenta propostas e caminhos de felicidade. Uma Espiritualidade que não conhecesse o endereço da Casa da Felicidade, mas teimasse em entristecer as pessoas, seria falsa.

Estou convencido que a pior estupidez humana é a da guerra que mata a vida e que o supremo bem da vida é a paz. É isto o que prega a Espiritualidade dos grandes mestres: que vivamos em paz, que nos amemos como irmãos e que, em paz, honremos o santo nome de Deus. Sem paz não dá para ajoelhar-se numa igreja nem fazer a festa da vida. Hoje, como sempre, os sonhos do amor procuram o endereço da casa da Paz. E só com paz no coração é possível ter espiritualidade e ser espiritual.

1. Ter espiritualidade e ser espiritual
As Igrejas, em geral, falam muito da Espiritualidade e todas as religiões oferecem a seus seguidores um itinerário de vida espiritual. Bastaria lembrar Buda, Confúcio, Moisés, Maomé, Jesus, para lembrar que há muitas Espiritualidades e muitos modos de ser espiritu-al, pensando, entendendo e vivendo a vida. Todos propõem o mesmo ideal: chegar a uma plenitude. Os caminhos, no entanto, são bastante diversos.

O grande teólogo e místico franciscano, São Boaventura, escreveu, no século XIII, um be-líssimo livro sobre a experiência de Deus, intitulado Itinerarium Mentis in Deum (Itinerário da Mente para Deus). A Editora VOZES publicou, na coleção "Herança Espiritual da Humanidade", alguns excelentes estudos que seriam de grande proveito para os interessados em Espiritualidade: Budismo, de Dennis Gira, Islamismo, de Jacques Jomier, Espiritualidade Cristã, de Jesús Espeja e Peregrinos Russos e Andarilhos Místicos, de Mi-chel Evdokimov. Aliás, uma das conseqüências da agitada e estressante vida moderna parece ser a do reflorescimento de uma vida espiritual mais intensa.

Mas antes de olhar para os livros, talvez seja útil à pessoa contemplar e entender seu próprio mistério ou complexidade, formada de corpo e espírito. Pesada por ser corpo e com raízes para não perder a identidade, ela é também leve e rica por ter espírito e asas para insuspeitados vôos, que a fazem sofrida e altaneira diante das pulsões instintivas do bicho que vive dentro dela.

Um e outro, corpo e espírito, somos nós. Não somos só corpo nem só espírito. Somos os dois somados, interligados, interdependentes, fusionados e amalgamados, em permanente comunhão e conflito, no qual o corpo se faz sempre mais exigente e nunca satisfeito e o espírito luta para não soçobrar no desafio de compor com o irmão corpo, sem desequilíbrios, esta difícil unidade.

A espiritualidade tem tudo a ver com esta complexa convivência entre corpo e espírito que, quando não consegue ser integrada, nos torna complicados. A pessoa humana não é um corpo desespiritualizado nem um espírito desencarnado. O modo como trabalhamos esta dualidade, rica e trágica, complexa e difícil de ser integrada, é que, finalmente, definirá nossa espiritualidade.

Ser simplesmente gente já é uma experiência espiritual. Os anjos também são espirituais, mas de outro jeito. O nosso jeito é humano, com corpo e alma, com matéria e espírito, com definições problemáticas e sentimentos desencontrados, com tempo que se esvai e eternida-de que nos assusta. A espiritualidade, por isso, que tem no espírito seu princípio de qualifi-cação, expressa-se eloqüentemente no corpo e somos espirituais na totalidade do nosso ser, por dentro e por fora, no corpo e no espírito, com um e outro.

A força espiritual de uma pessoa se mede pelo grau de intensidade com que faz algo ou como vive os ideais e suas relações. Quanto mais a pessoa se entrega, de corpo e alma, a alguma coisa, ação ou pessoa, mais espiritual ela o é. É muito espiritual, por conseguinte, quem é muito intenso e pouco espiritual quem é melancolicamente superficial.

Alguém pode ser muito espiritual quando trabalha, faz esporte, convive em família ou vai a uma igreja. Pode também ser minimamente espiritual quando reza, come ou faz amor. Bem entendido, um ato sexual pode ser mais espiritual do que a participação em uma procissão, quando o primeiro é feito com corpo e alma e a segunda, só com o corpo e sem alma. Que não haja dúvidas: a caraterística principal da espiritualidade é a intensidade com que se faz o bem, pouco importando que bem, materialmente, se faça.

Ressaltemos, no entanto, que não basta apenas intensidade desregrada de aplicação, que um animal e um bandido também podem ter. Faz-se necessário também retidão justa de inten-ção, que ocorre quando o espírito comanda e coordena o processo de busca do bem deseja-do. Não se pode, por isso, dizer que um animal, na caça de sua presa, ou um malvivente, em suas ações criminosas, sejam espirituais. Para o animal, faltar-lhe-ia espírito; para o bandi-do, correção de intenção e integração de suas forças. O primeiro é só animal em estado puro e instinto, enquanto o segundo é pouco espírito e muito animal em estado desintegrado e desumano.

A vida, em suas múltiplas facetas, será sempre a fonte primária para a espiritualidade. A inspiração poderá vir da paz e da alegria, da vida e da morte, do trabalho e da dor, da artes e dos esportes, da cidadania e do poder, do amor e do lazer, da terra, da natureza e de Deus.

Por sermos gente, todos somos espirituais, ou temos espiritualidade. Santos ou bandidos, piedosos seres eclesiais ou pecadores penitentes ou reincidentes, ninguém deixa de ser espi-ritual. Uns são mais, outros menos, uns de uma forma, outros de outra, mas espiritualidade todos têm porque todos são seres humanos. Na verdade, a experiência nos diz que uns são mais gente do que outros. É pois segundo este mais ou menos que somos mais ou menos espirituais.

Para ser profundamente espiritual não é preciso ser religioso. Bom seria que pessoas de confissão religiosa fossem também luminosamente espirituais, mas não é isto o que sempre se vê na prática. É bastante freqüente a confusão que se faz entre Espiritualidade e Religião. Diz-se, por exemplo, que determinada pessoa é muito espiritual porque tem muita religião. Pode ser um equívoco. Dentro das Igrejas cultiva-se uma religião que não transforma, sem mais, pessoas religiosas em seres espirituais. Não será, por isso, injustiça afirmar que, nas Igrejas, muitas vezes, temos pessoas com muita religião e pouca espiritualidade e, fora de-las, pessoas sem nenhuma religião, mas com muita espiritualidade.

Para os cristãos, a fonte, o caminho de vida, o critério e o alimento da espiritualidade são o Cristo da ressurreição e a história de Jesus. Quem segue esta espiritualidade deveria ser uma expressão intensa de Cristo, ecoando seus sentimentos e caráter. Ele é a cor da paixão dos cristãos pela vida, pelos pobres, doentes e pecadores, pelos perdidos e marginalizados, pelos que não têm pai e mãe, pelos que vivem separados pelos muros das mais várias se-gregações. A cor de Cristo é a da misericórdia e do perdão, da compaixão e da ternura, da consagração a Deus e da ousadia da santidade. É também a cor que abraça a ovelhinha transviada, a cor da beleza arrependida da pecadora pública, a cor da simplicidade cativante da vida, a cor da graça de ter irmãos, a cor da alegria de comer, de pescar e de viver. Tudo isto, somado à sua determinação pelo Reino de Deus, é a cor da verdadeira espiritualidade cristã.

Com vergonha, podemos confessar que estamos longe disso, mas sem esquecer que a espi-ritualidade é um processo longo e doloroso e, mais do que um dado, é um caminho de espi-ritualização. Não somos espiritualmente redondos, acabados. Muito lentamente, vamos nos fazendo mais espirituais e cristãos, na medida em que vamos nos tornando mais plenamente humanos à luz de Cristo e em seu seguimento.

"A glória de Deus, afirmou Santo Irineu (+202), é a pessoa plenamente viva". Ninguém se sente assim, mas podemos chegar lá. O que não podemos é abdicar da tarefa de fazer flo-rescer, de modo harmonioso, a graça da vida ou o nosso jeito humano de ser.

Frei Neylor J. Tonin

Sobre a graça de ter fé

Queridos amigos, gostaria de levantar, hoje, a voz para agradecer a Deus a graça de ter fé. Nós cremos porque Deus nos deu a graça de crer nEle. Ninguém chega a fé por um ato de vontade. Um ateu, por exemplo, não pode acordar de manhã cedo, dizendo: “Hoje, vou começar a acreditar, a ter fé em Deus”. Não é assim que, normalmente, começa, na vida das pessoas, a experiência da fé em Deus. O caminho normal para a fé é outro. Em geral, uma pessoa crê porque outras pessoas, de sua convivência, também crêem, assim como há os que deixam de crer porque, ao contacto com pessoas que crêem, se sentem desestimuladas e... descrentes. O testemunho que elas dão é tão negativo que a fé acaba lhes parecendo uma experiência pouco animadora. Costuma-se dizer que a fé é uma chama, tenra e luminosa, que se alimenta ao contacto com a chama da comunidade dos crentes. Por esta razão, é tão importante a celebração da fé nos cultos das Igrejas. Ali, fala-se da fé, canta-se e alimenta-se a fé, ali a fé cresce e se purifica, torna-se mais luminosa e aconchegante.

A fé é, essencialmente, uma experiência: uma experiência de Deus. E é Deus quem no-la concede. No-la concede através de nossos pais, da comunidade dos fiéis, do encontro com uma grande figura que, sem medo, vivenciou a fé. Um mártir, por exemplo, um santo ou uma pessoa que qualquer em quem reconhecemos a força e a beleza da fé.

Poderíamos nos perguntar se é fácil ter fé e crer. A resposta seria: é e... não é. É fácil crer quando nos sentimos bem, quando a vida transcorre normalmente, quando parece que Deus está próximo, cobrindo-nos com suas bênçãos. É fácil crer quando rezamos e cantamos em nossas Igrejas, quando os padres e pastores parecem ser homens de Deus, desapegados das coisas da vida, quando não fazem do dinheiro a principal preocupação de sua pastoral. É fácil crer quando nossa oração parece ser atendida, quando pedimos e recebemos, quando a Palavra de Deus nos enriquece e alimenta. Por outro lado, devemos admitir que, também, não é fácil crer. Não é fácil crer quando as nuvens tenebrosas das dúvidas parecem cobrir nossa vida. Não é fácil crer quando escândalos abalam nossas Igrejas, quando somos cobrados, aparentemente, para além de nossas forças. Não é fácil crer quando a doença bate à nossa porta, quando a morte nos arrebata uma pessoa querida, quando rezamos e Deus parece não responder, fazendo-se surdo, às nossas orações.

O que fazer, então, em tais circunstâncias? Os Mestres Espirituais aconselham, então, duas coisas: 1a.) Não desanimar. Não duvidar de Deus. Não entrar em desespero. 2a.) Continuar rezando como se nada estivesse de trágico acontecendo. É, então, dizem eles, que mais devemos rezar e acreditar. Eles argumentam que Deus não pode abandonar os que nEle crêem, porque Deus é fiel à Sua palavra e promessas. E a palavra de Cristo é clara: “Quem me segue não andará em trevas”, não se perderá. “Eu estarei convosco até o fim”, em todas as situações. “Eu sou o vosso pastor e vos conduzirei a pastagens verdejantes”. Este é o discurso de Deus em nosso Senhor, Jesus Cristo.

De Deus, não podemos duvidar em nenhuma hipótese, por nenhuma razão, porque suas palavras são eternas e seu amor é sem limites. Para que não duvidássemos de seu amor infatigável e inegável, Ele não duvidou em dar a vida de seu próprio Filho. Quem de nós seria capaz de um tal gesto? Deus o foi. Os Mestres da Espiritualidade afirmam que esta é a maior prova do amor de Deus por nós. Podemos sentir-nos abandonados e derrotados, mas Deus não nos abandonará nem seremos derrotados por nada deste mundo, uma vez que Deus, além de amar-nos apaixonadamente, é senhor da vida e da morte.

Querido amigo, nunca duvide de Deus, de seu amor por você e de seu poder! Quando as trevas cobrirem momentaneamente sua vida, quando suas orações parecem cair no vazio e não obterem resposta, continue de joelhos diante de Deus, crendo nEle, inabalavelmente! Deus continua sendo seu Pai e amando-o entranhadamente. Sua mão, possivelmente, o estará, então, conduzindo para o deserto, para falar-lhe mais intimamente ao seu coração. Em Sua divina providência, Ele o estará conduzindo para a Terra Prometida, onde corre leite e mel. Hoje, você poderá estar experimentando a secura da areia em seus lábios. Amanhã, será a aurora de um novo dia, de um lindo novo dia.

Frei Neylor J. Tonin