A CARIDADE ATENTA
Introdução
“Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não tivesse a caridade, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.
E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transformasse os montes, e não tivesse a caridade, nada seria”.
(I coríntios, cap 13, versículos 1 e 2)
Grande é o número de pessoas que buscam no cristianismo católico a devida reflexão e consolo. Sabemos que nossa igreja é parte de um projeto Divino, do corpo de Cristo que visa despertar nos corações a doce mensagem do Evangelho, porém, sabemos também que em nossas mãos estão depositadas as sementes necessárias para que tal projeto alcance o seu objetivo que é irradiar pela graça de Deus, o amor que irá contagiar o mundo.
Quando falamos em crescimento, surge em nosso peito (e isso é muito bom), reflexões sobre a manutenção do amor e da unidade entre nós No entanto, muitas vezes, nos tornamos desatentos à questão do acolhimento do outro dentro de uma perspectiva fundamentalmente cristã. A rotina de atividades que se desenvolvem a cada dia no cotidiano de nossa paróquias tendem a nos direcionar para práticas litúrgicas e de assistência social que quando transformadas em mera rotina, nos fazem desatentos aos olhos daqueles que adentram as nossas portas.
Com base nisso, procuraremos nas próximas linhas, trazer algumas reflexões sobre uma proposta franciscana de se viver o evangelho, que resolvemos chamar de “Caridade atenta”. Uma proposta que tenha como ênfase maior os olhos do outro, numa perspectiva de acolhimento integral e libertação de todos aqueles que cruzem os nossos caminhos.
Não temos a pretensão de trazer alguma novidade (o evangelho já tem dois mil anos), muito menos de fazer escola. Somos imperfeitos demais para tal intento. Apenas desejamos refletir profundamente sobre o que é de fato viver plenamente a mensagem de Jesus, tendo na caridade atenta, a valorização total do outro como peça fundamental do projeto do Cristo que liberta .
São apenas reflexões que busco neste trabalho, por isso, o mesmo está aberto a críticas e modificações que visem o crescimento do evangelho em nossas vidas.
Amando o Amor
Conta a história franciscana que o pobrezinho, costumava ser visto caminhando pela cidade de Assis, banhado em lágrimas e dizendo: - “O Amor não é amado, o Amor não é amado!” Alegava ele que a mensagem de Jesus não era vivida por aqueles que se diziam cristãos, e isso o entristecia profundamente. No entanto, tal constatação não o conduzia a prostração e ao desânimo. Muito pelo contrário! Francisco, por toda a sua vida viveu, guiado pelo Espírito, pregando e exemplificando o evangelho em sua plenitude, não deixando sequer uma alma humana sem acolhimento e conforto.
“Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida e a pobreza de nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe; quero nelas perseverar até o fim”.
(Conselhos a Santa Clara, 1)
Para Francisco, perseverar até o fim, significava amar intensamente a toda e qualquer criatura viva. Desde sua experiência marcante no episódio de seu encontro com o leproso, ele aprendeu que o amor existe latente em todas as criaturas, por isso, é a esse amor que a todos habita, que devemos dedicar toda a nossa devoção. As chagas presentes em todos nós, diante dessa perspectiva, demandam nossa inteira compaixão e luta.
O Amor significa literalmente transformar a Terra. O amor quando realmente amado, transforma as trevas em luz; as diferenças em unidade; a alienação em engajamento; o desespero em consolo e os olhos em acesso irrestrito ao meigo Jesus, cuja mensagem habita em todos os corações.
Amar o Amor significa transcender em muito a relação formal do assistencialismo vazio e da catequese apartada de uma real vivência. Sob tal ótica, antes da assistência está o olhar atento, crítico e amoroso; antes e concomitante a catequese está o coração; e antes da obra de pedra está o calor humano que a transforma realmente em um templo dedicado a Deus.
“O Amor não é amado, o Amor não é amado!” De fato isso é uma realidade que ainda habita o nosso planeta. Amar o Amor significa preponderar sobre o mal. É absorver a ousadia de Francisco em sua ânsia por transformar o mundo em um reino de paz e justiça. Amar o Amor é o mesmo que perceber o outro a partir dos olhos, com ternura e compaixão.
As sementes que caem
“... Eis que o semeador saiu a semear”.
E quando semeava, uma parte das sementes caiu à beira do caminho...”.
(Mateus, cap. 13, v. 3)
Esta parábola é uma das mais conhecidas por nós cristãos. Trata-se de uma abordagem de Jesus referente à relação de cada um de nós no trato com sua mensagem. Isto é, como sua mensagem atinge os nossos corações, significando, com isso, o nível de adesão nossa ao seu projeto de amor e de salvação. Porém, aqui queremos buscar um outro significado para tal parábola: o trecho acima, nos informa que o semeador quando saiu a semear, deixou algumas sementes cair ao longo do caminho, e é aí que construiremos nossa argumentação com relação à proposta que apresentamos neste trabalho.
A proposta da caridade atenta tem por objetivo atuar exatamente nesse ponto: não podemos deixar as sementes cair ao longo do caminho! Jesus, em sua parábola, nos informa que, das sementes que caíram, grande parte se perdeu, seja por falta de solo fértil e profundo, seja por espinhos que sufocaram-nas em seu entusiasmo inicial.
Sabemos o quanto é difícil cair das mãos do semeador e não ser imediatamente recolhido e recolocado em seu devido lugar. A semente longe do semeador, e distante do solo adequado, tende a se perder em meio a espinhos de toda a ordem. E quanto mais o semeador se distancia, mais a semente sofre, sob o risco de perecer. Mesmo sabendo que brotar é um ato da vontade individual de cada um de nós, sob a Graça de Deus, longe do semeador tal intento fica muito difícil e o fardo cresce assustadoramente!
A grandiosa obra construída por Francisco de Assis teve como ênfase maior exatamente o projeto de recolher as sementes que, devido a uma igreja formalista e desatenta caíam aos montes pelo caminho da idade média. Ele viveu por tal propósito, e nele iluminou toda a sua vida.
Atento aos olhos da humanidade, Francisco foi uma imagem emblemática num período que ficou conhecido como “idade das trevas“. Acolhendo pelos olhos, o pobrezinho sinalizou para a desatenção presente no coração dos cristãos, tão atribulados com ritos e formalismos numa igreja que não soube lidar com o seu próprio crescimento e muitas vezes colaborou com estratégias perversas de exclusão.
Militantes de tal seara, não podemos ficar desatentos à grandiosidade de sementes que surgem a cada dia em nossos campos. Ampliar tais campos hoje se faz necessário, e isso muito nos alegra, no entanto, devemos estar sempre atentos a quaisquer sinais de crescimento sem acolhimento. Algumas Paróquias, agigantadas em suas demandas, estatisticamente ampliam cada vez mais o número de pessoas assistidas e amparadas. Porém, pode crescer também o número daqueles que sinalizam para o fato de se sentirem, muitas vezes, como em uma grande instituição, onde sequer são olhados, tocados, acolhidos! Algumas sementes podem estar caindo ao longo do caminho e isso nós não podemos permitir.
Queremos neste trabalho, refletir com todos os irmão e irmãs sobre estas questões, buscando juntos, alternativas que mantenham sempre nossas paróquias atentas aos olhos daqueles que nelas cheguem, bem como, em todos os espaços onde nós possamos nos encontrar.
Teus olhos me bastam
“Não devemos julgar a prata e o dinheiro mais úteis do que as pedras”
( I Regra, VIII, 4)
Uma das bandeiras mais conhecidas do franciscanismo é sem dúvida a pobreza. Muitas vezes incompreendida, tal bandeira tem por excelência, demonstrar a importância de valorizarmos no homem aquilo que ele tem de mais sagrado: a sua condição de filho de Deus.
Diante do outro, devemos valorizar, a partir dos olhos, a filiação divina que lá habita, tendo nela o real ponto de aproximação e acolhimento. É olhar para outro e dizer: “- Os teus olhos me bastam”, isto é, com ternura, perceber que temos algo em comum com toda a criação: a filiação divina.
Acolher, não significa apenas atender bem aquele que nos solicita algo. É amar verdadeiramente, acolhendo o outro com devoção e carinho. O cartão de visita para demonstrar ao outro que Jesus está presente em todos nós é o sorriso. Sorrir é abrir ao outro as portas de nosso coração; é também um passaporte seguro para penetrar sem medo o coração alheio.
Que em nossas paróquias, os olhos do outro não só nos bastem como também nos alimentem para a jornada que escolhemos trilhar. Que nada mais nos importe tanto, que não seja os olhos do outro, que jamais podem fugir a nossa atenção.
Obedecendo a luz
“A lâmpada do corpo são os olhos; de sorte que, se teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz...”.
(Mateus, Cap. 6, v. 22)
Jesus nos ensina que através dos olhos conseguiremos nos transformar em luz. A mensagem de Francisco, por mais que tenha surgido como uma grande novidade para o seu tempo, como para os dias de hoje, nada mais faz do que enfatizar as palavras do meigo Senhor.
A obra do pobrezinho de Assis tem como um de seus pilares, o conceito de obediência, a obediência que nos transforma em fieis seguidores da luz. Ser obediente para Francisco é seguir a máxima de Cristo que diz: “Deixai brilhar a vossa luz”. E isso significa obedecer incondicionalmente aos apelos desta Luz, a Luz de Cristo. A obediência franciscana significa fazer penetrar e ficar definitivamente em nossos corações a caridade, o amor ao outros e às instâncias hierárquicas que norteiam a igreja, transformando com isso todo o nosso ser.
O obedecer franciscano significa olhar sempre e com ternura; acolher sempre, apesar de tudo; compreender sempre apesar das discordâncias; recolher as sementes que caiam pelo caminho; e acima de tudo, ficar atento para que elas não venham a cair.
O olhar casto
“É assim que, neste mundo que passa, unida para sempre a seu nobre Esposo, ela encontrava continuamente um novo sabor nos mistérios do alto”.
(V. de Clara, 20)
Na passagem acima, podemos compreender o que de fato significa a castidade franciscana. Unida a Cristo, Clara de Assis encontrou um novo sabor para a sua vida. Ela percebeu que pelos olhos de Jesus era possível ver o mundo sob uma nova ótica: a ótica do amor! Aqueles que se deixam inundar pelo evangelho, transformam seus olhos em faróis de luz e de contentamento, percebendo sempre possibilidades reais de transformação perante os percalços da vida.
Ter um olhar casto favorece o acolhimento incondicional de todos aqueles que possam surgir diante de nós. É olhar para além das aparências; para além das possíveis chagas que no outro, possam refletir a nossa própria realidade.
É, vendo a Cristo, abraçar o outro com devoção e ternura, a mesma ternura que moveu Francisco e Clara em sua gigantesca obra.
Conclusão
Estas são apenas algumas reflexões surgidas em nós, referentes às inúmeras possibilidades de transformação que surgem a partir de uma prática de valorização dos olhos como elemento maior de evangelização e acolhimento. Estar atento ao outro em todos os momentos nos parece à palavra de ordem para a fase em que vivemos em nosso planeta. Ensinar e assistir são dois pontos fundamentais em nossa fé e a eles devemos estar muito atentos. Porém, em nossa singela opinião, buscando alicerçá-la numa leitura franciscana do evangelho, somente através dos olhos conseguiremos de fato assistir e ensinar de uma forma genuinamente cristã e transformadora.
Paz e bem!
Dom Theófilo Leo
ESPAÇO DE REFLEXÃO FRANCISCANA
Organizado por Dom Theófilo Leo HFC (csr), Bispo do Rio de Janeiro da Holy Celtic Church. Capela Episcopal de São Judas Tadeu, Rua 29 de Abril, 668, Guaratiba, Rio de Janeiro, RJ.
domingo, 6 de novembro de 2016
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012
Judas, o grande equivocado
Muitos colocam Judas como o grande traidor de Cristo, no entanto, vejo sua traição como um grande equívoco acima de tudo. Judas, como as pesquisas mostram, foi um Zelote, também conhecidos como sicários. Grupo revolucionário fundamentalista que acreditava que o Messias viria liderar o povo Hebreu contra o jugo de Roma. Acreditavam num Messias guerreiro que de arma em punho destruiria os inimigos de Israel iniciando um reinado de paz.
A revolução de Jesus, no entanto, era outra: a revolução do amor! Foi muito difícil para Judas entender e seguir um mestre que curou o servo de um centurião romano, que disse para darmos a César o que é de César e que pregava o perdão das ofensas e o amor aos inimigos. No contexto de opressão em que vivia o povo hebreu, cujo jugo Romano beirava o insustentável, entender tal proposta de vida e de fé, realmente era algo muito difícil para uma pessoa da estirpe de Judas.
A medida que os acontecimentos vão se desenrolando, Yeshoua não corresponde mais a sua expectativa. Judas tem a impressão de ter sido “traído”: o Messias não toma o poder e nem lhe dá poder. A injustiça, a miséria, a violência continuam a reinar no país. Não o reino de Deus que se aproxima, ainda estamos no reino de César...Um homem desiludido é um homem perigoso. Um homem traído só pode tornar-se um traidor.
(Jean-Yves Leloup, Judas e Jesus, Editora Vozes, 2007, página 162)
Sentido-se traído por ter se equivocado sobre a real finalidade do Messias, Judas entregou Jesus. Pensava: “se for ele o Messias, preso, fará sinais que colocará todo o Sinédrio de joelhos e libertará o nosso povo da opressão romana.” Mas Jesus, se deixou prender e aceitou a sua cruz como ninguém. Veio o remorso, a percepção do grande erro cometido.
3.Judas, o traidor, ao ver que Jesus fora condenado, ficou arrependido e foi devolver as trinta moedas de prata aos sumos sacerdotes e aos anciãos,4.dizendo: “Pequei, entregando à morte um inocente”. Eles responderam: “Que temos nós com isso? O problema é teu”.5.E ele jogou as moedas no Santuário, saiu e foi se enforcar.
(Mateus,27:3-5)
Judas, diante da certeza do erro cometido, buscou refúgio naquele que era o seu maior referencial de fé: O templo. Assim como Pedro, Judas passou pelo remorso de ter traído seu Mestre. Não buscou os onze apóstolos, talvez pela vergonha de encará-los após tamanha traição. No entanto, como um homem de fé, buscou no templo de Jerusalém o seu refúgio, o seu repouso. “O que temos nós com isso? O problema é teu.” Essa foi a resposta que aquele homem atônito e arrependido ouviu dos representantes da fé. Desesperado e se sentido usado, não sabendo a quem recorrer e carcomido pelo remorso, cometeu o desatino de se suicidar.
Muitas vezes, simplesmente acusamos Judas de traidor, sem levar em conta as circunstâncias em que tudo aconteceu. E deixamos de perceber o grande mal que causamos quando deixamos de acolher nossos irmãos e irmãs, preferindo acusar, usar de maledicência e como os membros do sinédrio simplesmente dizer: “O que temos nós com isso? O problema é teu.”
Dom Theófilo Leo HFC (csr)
sexta-feira, 26 de agosto de 2011
A Morte na visão de São Francisco
Dom Celso Franco de Oliveira
Bispo Anglicano
Inicialmente, é-me imperioso agradecer o oportuno convite que me foi feito pelo frei Clarêncio, para celebrarmos hoje, o “ Transito de são Francisco,” pensando com vocês, “ “A Morte na Visão de São Francisco” ou o “Transito na visão de são Francisco”.
É bastante curioso e significativo chamar a morte de “transito, porque a palavra “transito”, segundo o nosso vernáculo, significa movimento, percurso, marcha, efeito de caminhar, e é nesse sentido que para se falar da morte de são Francisco, temos que ter em mente a morte não com um fim-fim mas como transito, dando-nos a idéia de que o nosso Francisco não se acaba, não desaparece, pelo contrario transita entre nós, se eterniza, continua vivo e se presentifica, não somente entre os religiosos mas também no mundo secular, constituindo-se hoje, para o nosso ecossistema, uma espécie de ícone no resgate da qualidade de vida neste planeta terra que “ geme com dores de parto, aguardando a adoção dos filhos,” com disse São Paulo na sua Epístola ao Romanos.
Lembro-me ainda da palavra “transito” quando, há poucos anos atrás, participei de uma jornada de psicanálise no Colégio dos Cirurgiões em Botafogo, cujo tema da Jornada foi “Winnicott em Transito” ocasião em que celebrava os cem anos desse inesquecível psicanalista inglês cuja contribuição psicanalítica continua em ressonância dentro dos nossos consultórios até hoje. Winnicott fez o seu transito em 1971 deixando em um de seus livros o seguinte testamento: “Quero estar vivo no momento da minha morte”.
A historia de São Francisco, particularmente, o seu jeito de ser, sua trajetória de vida e, principalmente, a forma como encarou o seu “transito”, poderia nos autorizar a falar de São Francisco em Transito, em movimento, um homem a caminho, ou ainda, se quisermos, são Francisco “em transe”.
Basta aprofundarmos algumas considerações psicológicas sobre seu estilo de vida, para descobrirmos um homem em transe, não no sentido daquilo que chamamos “estados alterados de consciência” induzido por um procedimento hipnótico, letárgico, mas um transe vivido como experiência do êxtase e do numinoso, aquela experiência capaz de alterar o nosso olhar sobre o mundo, capaz de transcender, de superar, de re-significar a existência e de colocar- nos em inteira disponibilidade como quem se transfigura.
Assim vemos um São Francisco transfigurado quando mesmo doente e cego, cantava seu cântico ao irmão sol embora não pudesse mais contempla-lo. É que o sol que Francisco canta não é o sol que conhecemos mas o sol de sua interioridade, das suas riquezas interiores, porque só percebemos o brilho lá fora quando há brilho dentro de nós.
Quando se vive uma experiência de transfiguração, a morte sempre entendida como desenlace final, se transforma em transito. Deixa de ser um espantalho humano, para encapsular-se na própria vida. Vida e morte se eclipsam, como de forma brilhante nos diz Leonardo Boff “O sentido que damos a vida é o que damos a morte e o sentido que damos a morte é o sentido que damos a vida” A morte na visão de São Francisco vinha com um sabor de plenitude numa compreensão simbólica, mística, sapiencial e planetária.
Lamentavelmente, somos herdeiros de tradição cultural Newton-Cartesiana, onde a matéria e espírito se separam e se bifurcam em corpo e alma, como ainda quer pensar hoje a Igreja. Francisco foi o santo das sínteses e da reconciliação de tudo .
Hoje, a neurociencia que vai ganhando mais espaço nas pesquisas neorológicas, nos da conta que o nosso hemisfério cerebral, direito e esquerdo, com seus milhões de neuronios, interagem no corpo caloso, não mais entendidos como duas estâncias separadas, mas como superação unitária. Ambos com sua capacidade de síntese, vão formar o que os antigos chamavam de terceira visão ou o “chifre do unicórnio” neste sentido é que a visão de Francisco sobre a morte, vai dar lugar a síntese da vida e longe da morte ser o lugar morbido, de prantos e culpabilizações, transforma-se em acolhimento, num espaço de cantoria, entoada não somente pelos seus confrades presentes mas também pelo contracanto sinfônico de toda criação.
A vida e o transito de São Francisco, nos fascina, na medida em que nos indagamos pela psicogêneses de suas gigantescas superações, sua coragem, desprendimento, energia e sobretudo sua resiliência, aquela capacidade que alguém possui no sentido de superar adversidades. De romper com apegos que impedem de buscarmos nossa singularidade, livrando-nos, assim, de vivermos assujeitados ao desejo do outro sem que tenhamos a capacidade de nos tornar pessoas inteiras e desenvolver nossas potencialidades como indivíduos.
E a primeira “morte”, o primeiro “corte” que Francisco constroi foi o sua individuaçao com o seu pai e na seqüência com o Bispo local.
Francisco vai individualizar-se em relação a seu pai, o Sr. Bernardoni, um pai dominador, consumista, que passa a maior parte de sua vida pensando mais nos seus lucros como comerciante, do que perceber a grandiosidade do filho. É significativo o gesto de Francisco tentando se libertar desse domínio paterno, quando sai pelas ruas distribuindo os bens do Sr. Bernardoni entre os pobres.
Numa interpretação elementar desse gesto se poderia dizer que ao mesmo tempo que distribuía os bens do pai entre os pobres, tornava-se Francisco, ele mesmo, o bom pai que nunca teve. Era ele ainda o próprio pobre, o mendigo, o leproso, numa relação simultânea de sujeito e objeto.
O temor de perder na vida a oportunidade de relacionar-se, de viver radicalmente o amor que tanto pregou, de ser notado, de ser olhado, e desejado pelo pai, levou Francisco a desnudar-se, de despir-se diante do próprio pai sinalizando em primeiro lugar a quebra das relações que segundo consta não eram das melhores. E em segundo lugar, o rompimento com o sistema capitalista com o qual o pai e a Igreja na pessoa do Bispo, estavam comprometidos.
Uma vez completamente desnudo, Francisco entrega seus trajes ao pai. A nudez do jovem parece falar de seu desejo de mostra-se sem máscara diante do pai, esperando dele uma certa reação de condescendência ou um gesto que expressasse algum sinal de acolhimento paternal. É que o temor que mais nos atinge enquanto seres humanos é o temor do desamparo, o medo da solidão que sempre se reporta a perda do amor do pai.
Experienciando a dor da falta do amor do pai real, Francisco vai singrar outros mares no encalço de outras pais simbólicos. Afinal, Francisco sente uma extrema necessidade de substitutivos simbólicos capazes de “ressuscitá-lo” da morte de sua relação perdida . O texto de sua conhecida oração, especialmente onde encontramos as palavras “onde houve discórdia que eu leve a união, onde desespero que eu leve esperança, que eu procure mais consolar que ser consolado” encontramos Francisco falando de si mesmo, aludindo seus proprios registros internos numa tentativa de superação dos mesmos.
Alguém disse que “de dentro do caos, irrompe uma ordem superior que se auto-regula e se refaz, e esta ordem superior e a vida” Francisco se identifica com EROS o representante da Pulsão de Vida, pulsão que nos autoriza a liberdade, a espontaneidade, a fantasia e a expressão do desejo. Francisco de forma heróica e, quase sobre-humana, transpôs os umbrais da pulsão de morte, do sentimento de terminalidade. Irmana-se com a morte num vinculo de cumplicidade e companheirismo.
Esse “irmao-sempre-alegre” como costumeiramente e chamado, torna-se alguém para alem do inorgânico ou para onde nos arrasta e nos atrai a pulsao de morte. Superando de forma inequívoca as categorias maniqueístas do bem e do mal, Francisco se transfigura numa espécie de hispostase cósmica, reconcilia-se com todas as criaturas, mergulha no mistério insondável, vive como ressuscitado ainda que na existência terrena. Traz dentro de si a sensação intensa de êxtase, perde o “self-objeto” percebendo-se não limitado ao corpo.
Sua morte cantada, longe de ser uma experiência terminal, e recebida como a entrada do vazio na plenitude, do finito para o infinito, da falta para a totalidade. Francisco vira símbolo de toda saudade e de todo desejo de completude humana e não humana e, mais que isso, Francisco se consagra como um dos arquétipos da humanidade reconciliada.
O Tau Franciscano
“Era como se sua missão consistisse em traçar o Tau na fronte das pessoas que gemem e choram” (Boaventura)
A Fraternidade universal franciscana espalhada no mundo inteiro, tem no Tau a concentração de sua espiritualidade. Símbolo da vida, da cor-dialidade, da com-fraternização, da sensibilidade, da leveza, da energia central que anima o espírito e da conversão permanente ao Cristo. O Tau prefigura a cruz quando ocupa o último lugar no alfabeto hebraico, assemelhando-se à forma de cruz.
O alfabeto grego o coloca no décimo nono lugar sugerindo um “T” maiúsculo. É que na antiguidade dava-se muita atenção à correlação entre a letra e o número e vice-versa, derivando daí a teoria da “gematria” que dava as palavras bíblicas certo valor numérico. O Tau representava, por exemplo, o número trezentos por sua derivação do três e do cem e múltiplo de dez dando o sentido de completude. O texto de Ezequiel (9,1-11), tornou-se um clássico na evolução histórica do Tau onde por duas vezes é mencionado o sinal da cruz ou “T” do alfabeto hebraico que ali preserva do mal o povo justo. “Percorra a cidade de Jerusalém e marque com uma cruz (T) a testa dos indivíduos que estiverem gemendo por causa das abominações que se fizer no meio dela...” (v. 4). “Não toqueis nenhum homem sobre quem estiver o sinal” (v.6). Ainda no AT, dentro das prescrições de Moisés no Livro do Êxodo (l2, 21-23), os israelitas são identificados e poupados do anjo exterminador por mediação de um “sinal” impresso nos batentes das portas da casa. No livro do Apocalipse (7, 2-3) de forma análoga o exilado de Patmos registra o “selo de Deus” na fronte de seus servos. “Não façais mal à terra nem ao mar nem às árvores até que tenhamos o selo de nosso Deus na fronte de seus servos” há aí, segundo alguns comentaristas, uma forte referência ao Tau, como o “selo de Deus”, um “sinal” de salvação aos que experimentam a conversão e se tornam servos de Deus.
Geralmente esculpido em madeira tosca e suspenso por um cordão de couro, o Tau consagrou-se como símbolo da mística e testemunho de vida franciscana.
Fontes históricas dão conta que São Francisco aproximou-se inicialmente do Tau como sinal que identificava as congregações de apostolado caritativo-hospitaleiro, como por exemplo, a ordem hospitaleira de Santo Antonio Eremita, ou Antoninos, bastante conhecida no seu tempo que cuidava da assistência aos hansenianos. Foi também o Tau símbolo que inspirou São Francisco no seu apostolado entre os forasteiros e peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela, ele mesmo e seus frades se definiam como peregrinos.
Segundo Tomás de Celano, S. Francisco dava início as suas atividades diárias com o Tau e com ele assinava seus inúmeros “bilhetes” como também com o mesmo decorava as paredes da cela. Certa vez transportando um enfermo que agonizava, tocou-lhe a fronte com seu bastão ornamentado com o sinal do Tau , devolvendo-lhe a saúde.
Outra, e mais importante familiaridade de São Francisco com o Tau, é a aliança que o santo estabelece com a pobreza, escolhendo-a voluntariamente como uma acese de despojamento e identificação com os pobres, não somente entre os pobres mas como pobre, pobreza como disponibilidade interior, como uma maneira evangélica de ser, individuada, livre, comprometida-descomprometida.
O Tau ao lado de tantos outros sinais iconográficos cristãos, vai marcar também sua presença nas inscrições das catacumbas junto aos nomes dos mártires, assinalando sua eloqüência evangélica de resistência ao poder dos mais fortes e ao mesmo tempo excluindo qualquer possibilidade do “sinal” Tau ser reduzido a mero adorno decorativo dissociado do testemunho de vida e das virtudes essenciais fundamentadas na conversão e pobreza de quem ousa viver o Cristo crucificado e a riqueza e dimensão do “pax et bonum” da
espiritualidade franciscana.
Dom Celso Franco de Oliveira
quinta-feira, 25 de agosto de 2011
Espaço de estudo
A devoção natalina de São Francisco e Santa Clara
Para reencontrar a nossa "secularidade", deveríamos procurar responder à pergunta por que Francisco considerava o Natal "a festa das festas" (2Cel 1 99).
Para muitos teólogos, essa afirmação é uma aberração da piedade popular. No seu parecer, a época pascal (de Sexta-feira Santa até Pentecostes) constitui o ponto alto
do Ato litúrgico. De fato, em muitas partes, a festa de Natal foi reduzida a um acontecimento folclórico, sentimental e sem compromisso, uma espécie de fuga da realidade a um mundo tanto interior quanto irreal, que não tem nada que ver com a verdadeira vida.
É possível, porém, ver o Natal também de uma outra maneira. Nas suas teses, o teólogo franciscano Duns Scotus partiu teologicamente do amor de Deus. Deus se identifica de tal modo com o Amor que não pode ser entendido como isolado ou único. Não é, portanto, "um ser que existe para si mesmo", como foi formulado por vários filósofos. Pelo contrário, Deus é total doação, total entrega. Por isso, quer um mundo onde as criaturas amem a si mesmas e aos outros, formando uma única criação interdependente, que constitui uma espécie de rede, uma realidade definida pelas suas relações mútuas e não pelas suas delimitações e separações. Por este motivo, de um modo insuperável, Deus mesmo se fez presente numa criatura: Jesus de Nazaré. Através dele, deseja amar todo mundo e ser amado por todo mundo. Todos hão de reconhecer onde está o seu centro, para poder crescer à plena unidade no amor.
É por isso que Francisco celebrou a vinda de Deus ao mundo. Para ele, Deus é a encarnação da humildade, que se encontra até nas mínimas coisas: numa criança, que nasce num estábulo, no meio da indigência, da falta de abrigo, na pobreza e na miséria, em todas as necessidades, criadas por uma economia e uma política que permitem e aceitam a situação de refugiados e exilados, de pobres e leprosos como uma espécie de subprodutos. Deus nos convida a procurá-lo no meio dos pobres, também entre as criaturas sofredoras e famintas, entre seres humanos e animais. Por este motivo, Francisco queria conseguir que tanto o Imperador como também "todos os governantes dos povos" no mundo inteiro promulgassem leis que reconhecessem essa verdade. Para ele, o Natal dá o impulso para superar tanto a pobreza, como a fonte, para constituir o fundamento da verdadeira humanização das pessoas.
A continuação do Natal acontece na Eucaristia: Deus "se humilha todos os dias", entrando num pedaço insignificante de pão, partilhado pelos que acreditam nele (Adm1). Deus quer que - diariamente de novo - as pessoas se encontrem juntas na sua presença. Ninguém deveria continuar a se apegar a seus propósitos egoístas, ninguém deveria esconder-se no seu ninho individual, mas todos têm que se levantar de todos os lados para recomeçar a se reencontrar mutuamente e ao mundo inteiro: o mar e o campo, a terra e o céu: tudo há de reviver (CtOrd) e a "beatifica comunhão) (ParPn) que existe no céu há de se tornar visível e reconhecível já aqui na terra.
Natal significa uma subversão diária dos valores e uma transformação radical do comportamento humano. Aquilo que parece pequeno e insignificante tem que ser considerado grande; aquilo que é considerado importante e valioso tem que reverter à categoria das coisas sem valor. Os pensamentos de Deus não são os pensamentos humanos. Os leprosos pertencem ao centro, os poderosos têm de ceder-lhes o lugar central. A Família Franciscana é destinada a trazer a mudança divina e revolucionária para dentro do mundo, assim como Maria o exprimiu no seu canto Magnificat.
E é assim que Deus se une irrevogavelmente ao mundo. E somente aqueles que seguem o exemplo de Deus, assumindo o mundo para mudar o seu destino para o bem, estão do lado de Deus. Cruz e Ressurreição são extensões desse pensamento, são condensações, culminações, conseqüências dele. Portanto, Deus chega a ser a força histórica e modificadora para todos os que acreditam na Religião da Encarnação e que dão testemunho dela. Numa carta escrita por Francisco, ele definiu as pessoas que têm fé como "Mães de Deus". Como Maria, também nós podemos conceber Deus, carregando-o em nós e fazendo-o nascer pelas nossas boas obras. Portanto, podemos contribuir com nossa parte, para que Deus esteja realmente presente no mundo, de um modo visível e palpável (cf. 2CFi 53).
A seu modo, também Clara de Assis dá testemunho do mesmo mistério da Encarnação de Deus. Assumiu o pensamento místico do seu amigo Francisco para o aprofundar, alcançando um ponto alto na sua experiência interior, ao escrever a sua amiga, Inês de Praga: "Ama totalmente aquele que totalmente se deu por teu amor, aquele cuja beleza o sol e a lua admirará e cuja generosidade, preciosidade e grandeza não têm limites, isto é, ao Filho do Altíssimo, que nasceu de Maria, a qual permaneceu virgem depois do parto. Prende-te àquela dulcíssima Mãe, que engendrou tal filho que os céus não podiam conter e que, todavia, ela conteve no pequeno claustro de seu santo corpo e trouxe no seu seio virginal" (3Ctln 3). O infinitamente grande se limita; o inatingível se deixa tocar. Aqui Clara retoma o motivo de um antigo hino a Maria:
Aquele que a terra, o mar e o ar
Louvam, adoram e veneram;
Aquele, Senhor dos três mundos,
Foi contido no seio de Maria.
Seria bom se nós nos detivéssemos um pouco mais neste pensamento da livre autolimitação de Deus; pois, há de ficar o pensamento central da fé cristã. O fato da criação já foi um ato de autolimitação; Deus se retirou, se limitou para que a criação tivesse espaço, tivesse uma história autônoma, para que os seres humanos tivessem sua liberdade. E quando Deus se revela, então se submete à sua própria criação, se entrega nas mãos dos seres humanos, se deixa tocar, se faz presente em tudo que não é Deus.
Clara persegue essa idéia até os seus extremos: "Vejo como é manifesto que a alma do homem fiel, pela graça de Deus, a mais dignaç das criaturas, é maior do que o próprio céu. Pois os céus e todas as outras criaturas não conseguem conter o Criador, mas somente a alma do homem fiel pode ser sua mansão e sua morada. Isto é apenas possível pela caridade da qual estão privados os ímpios. Ora, aquele que é a Verdade diz: Quem me ama será amado pelo meu Pai e eu o amarei, e nós Viremos a ele e nele faremos a nossa morada" (Jô 14, 21-23) (3Ctln 4). Aquilo que aconteceu a Maria em nível biológico-histórico continua sendo uma possibilidade real em nível místico-espiritual para todo cristão que tem fé: a consciência de Deus, a Encarnação de Deus, a habitação de Deus dentro do ser humano.
Neste sentido, Clara escreveu a Inês: "Assim como a gloriosa Virgem das virgens o trouxe materialmente em seu corpo, da mesma maneira também tu, seguindo os seus passos, especialmente a humildade e a pobreza, sem dúvida alguma, poderás trazê-lo espiritualmente no teu casto e virginal coração. Deste modo, conterás aquele pelo qual tu, e todas as criaturas, são contidas. Igualmente possuirás algo mais precioso do que o resto dos bens passageiros que este mundo pode oferecer" (3Ctln 4).
Portanto, também para Santa Clara, o objetivo da Encarnação de Deus é o mundo, o universo.
Para reencontrar a nossa "secularidade", deveríamos procurar responder à pergunta por que Francisco considerava o Natal "a festa das festas" (2Cel 1 99).
Para muitos teólogos, essa afirmação é uma aberração da piedade popular. No seu parecer, a época pascal (de Sexta-feira Santa até Pentecostes) constitui o ponto alto
do Ato litúrgico. De fato, em muitas partes, a festa de Natal foi reduzida a um acontecimento folclórico, sentimental e sem compromisso, uma espécie de fuga da realidade a um mundo tanto interior quanto irreal, que não tem nada que ver com a verdadeira vida.
É possível, porém, ver o Natal também de uma outra maneira. Nas suas teses, o teólogo franciscano Duns Scotus partiu teologicamente do amor de Deus. Deus se identifica de tal modo com o Amor que não pode ser entendido como isolado ou único. Não é, portanto, "um ser que existe para si mesmo", como foi formulado por vários filósofos. Pelo contrário, Deus é total doação, total entrega. Por isso, quer um mundo onde as criaturas amem a si mesmas e aos outros, formando uma única criação interdependente, que constitui uma espécie de rede, uma realidade definida pelas suas relações mútuas e não pelas suas delimitações e separações. Por este motivo, de um modo insuperável, Deus mesmo se fez presente numa criatura: Jesus de Nazaré. Através dele, deseja amar todo mundo e ser amado por todo mundo. Todos hão de reconhecer onde está o seu centro, para poder crescer à plena unidade no amor.
É por isso que Francisco celebrou a vinda de Deus ao mundo. Para ele, Deus é a encarnação da humildade, que se encontra até nas mínimas coisas: numa criança, que nasce num estábulo, no meio da indigência, da falta de abrigo, na pobreza e na miséria, em todas as necessidades, criadas por uma economia e uma política que permitem e aceitam a situação de refugiados e exilados, de pobres e leprosos como uma espécie de subprodutos. Deus nos convida a procurá-lo no meio dos pobres, também entre as criaturas sofredoras e famintas, entre seres humanos e animais. Por este motivo, Francisco queria conseguir que tanto o Imperador como também "todos os governantes dos povos" no mundo inteiro promulgassem leis que reconhecessem essa verdade. Para ele, o Natal dá o impulso para superar tanto a pobreza, como a fonte, para constituir o fundamento da verdadeira humanização das pessoas.
A continuação do Natal acontece na Eucaristia: Deus "se humilha todos os dias", entrando num pedaço insignificante de pão, partilhado pelos que acreditam nele (Adm1). Deus quer que - diariamente de novo - as pessoas se encontrem juntas na sua presença. Ninguém deveria continuar a se apegar a seus propósitos egoístas, ninguém deveria esconder-se no seu ninho individual, mas todos têm que se levantar de todos os lados para recomeçar a se reencontrar mutuamente e ao mundo inteiro: o mar e o campo, a terra e o céu: tudo há de reviver (CtOrd) e a "beatifica comunhão) (ParPn) que existe no céu há de se tornar visível e reconhecível já aqui na terra.
Natal significa uma subversão diária dos valores e uma transformação radical do comportamento humano. Aquilo que parece pequeno e insignificante tem que ser considerado grande; aquilo que é considerado importante e valioso tem que reverter à categoria das coisas sem valor. Os pensamentos de Deus não são os pensamentos humanos. Os leprosos pertencem ao centro, os poderosos têm de ceder-lhes o lugar central. A Família Franciscana é destinada a trazer a mudança divina e revolucionária para dentro do mundo, assim como Maria o exprimiu no seu canto Magnificat.
E é assim que Deus se une irrevogavelmente ao mundo. E somente aqueles que seguem o exemplo de Deus, assumindo o mundo para mudar o seu destino para o bem, estão do lado de Deus. Cruz e Ressurreição são extensões desse pensamento, são condensações, culminações, conseqüências dele. Portanto, Deus chega a ser a força histórica e modificadora para todos os que acreditam na Religião da Encarnação e que dão testemunho dela. Numa carta escrita por Francisco, ele definiu as pessoas que têm fé como "Mães de Deus". Como Maria, também nós podemos conceber Deus, carregando-o em nós e fazendo-o nascer pelas nossas boas obras. Portanto, podemos contribuir com nossa parte, para que Deus esteja realmente presente no mundo, de um modo visível e palpável (cf. 2CFi 53).
A seu modo, também Clara de Assis dá testemunho do mesmo mistério da Encarnação de Deus. Assumiu o pensamento místico do seu amigo Francisco para o aprofundar, alcançando um ponto alto na sua experiência interior, ao escrever a sua amiga, Inês de Praga: "Ama totalmente aquele que totalmente se deu por teu amor, aquele cuja beleza o sol e a lua admirará e cuja generosidade, preciosidade e grandeza não têm limites, isto é, ao Filho do Altíssimo, que nasceu de Maria, a qual permaneceu virgem depois do parto. Prende-te àquela dulcíssima Mãe, que engendrou tal filho que os céus não podiam conter e que, todavia, ela conteve no pequeno claustro de seu santo corpo e trouxe no seu seio virginal" (3Ctln 3). O infinitamente grande se limita; o inatingível se deixa tocar. Aqui Clara retoma o motivo de um antigo hino a Maria:
Aquele que a terra, o mar e o ar
Louvam, adoram e veneram;
Aquele, Senhor dos três mundos,
Foi contido no seio de Maria.
Seria bom se nós nos detivéssemos um pouco mais neste pensamento da livre autolimitação de Deus; pois, há de ficar o pensamento central da fé cristã. O fato da criação já foi um ato de autolimitação; Deus se retirou, se limitou para que a criação tivesse espaço, tivesse uma história autônoma, para que os seres humanos tivessem sua liberdade. E quando Deus se revela, então se submete à sua própria criação, se entrega nas mãos dos seres humanos, se deixa tocar, se faz presente em tudo que não é Deus.
Clara persegue essa idéia até os seus extremos: "Vejo como é manifesto que a alma do homem fiel, pela graça de Deus, a mais dignaç das criaturas, é maior do que o próprio céu. Pois os céus e todas as outras criaturas não conseguem conter o Criador, mas somente a alma do homem fiel pode ser sua mansão e sua morada. Isto é apenas possível pela caridade da qual estão privados os ímpios. Ora, aquele que é a Verdade diz: Quem me ama será amado pelo meu Pai e eu o amarei, e nós Viremos a ele e nele faremos a nossa morada" (Jô 14, 21-23) (3Ctln 4). Aquilo que aconteceu a Maria em nível biológico-histórico continua sendo uma possibilidade real em nível místico-espiritual para todo cristão que tem fé: a consciência de Deus, a Encarnação de Deus, a habitação de Deus dentro do ser humano.
Neste sentido, Clara escreveu a Inês: "Assim como a gloriosa Virgem das virgens o trouxe materialmente em seu corpo, da mesma maneira também tu, seguindo os seus passos, especialmente a humildade e a pobreza, sem dúvida alguma, poderás trazê-lo espiritualmente no teu casto e virginal coração. Deste modo, conterás aquele pelo qual tu, e todas as criaturas, são contidas. Igualmente possuirás algo mais precioso do que o resto dos bens passageiros que este mundo pode oferecer" (3Ctln 4).
Portanto, também para Santa Clara, o objetivo da Encarnação de Deus é o mundo, o universo.
Espaço de estudo
O mundo como "convento"
À primeira vista, também Francisco e Clara foram marcados pelo espírito de dualismo. Jejuavam e mortificavam-se, tratavam mal o seu "irmão jumento", quer dizer, seu próprio corpo, com tanta dureza que chega a ser quase incompreensível hoje em dia. Os dois "saíram do mundo". Francisco usou esse termo para expressar que o beijo que deu ao leproso significava realmente uma mudança radical na sua própria vida. Com esse passo, porém, não chegou a um estado extraterrestre, muito pelo contrário.Espaço de estudo
O QUE QUER DIZER O TERMO "SECULAR"?
Antes de prosseguir nesta procura, temos que esclarecer o termo "secular" de modo mais nítido. Pois, neste contexto, essa palavra não é sinônima nem de "ateu", nem de "secularizado" (cf. Lição 14), mas significa bem outra coisa. Trata-se justamente do contrário! Pois, não é possível encontrar a Deus a não ser no âmbito secular, em "todas as coisas deste mundo", como Inácio de Loyola definiu: quer dizer, nas pessoas humanas com suas preocupações e necessidades, suas alegrias e esperanças, nos animais, nas plantas e nas pedras, nas situações concretas e nas circunstâncias sociais, nos acontecimentos e nas experiências da história. Portanto, a pessoa religiosa não precisa ir ao deserto, subir ao cume de um monte ou refugiar-se no mundo interior da alma (apesar de poder fazer isto também!) para procurar a Deus. Não precisa despedir-se do mundo para encontrar a Deus. Este é o ensino da Bíblia, com a qual estamos comprometidos.
Na história da Igreja é possível encontrar ainda uma outra influência predominante: A realidade como constutuída de duas partes desiguais, ou seja, do "mundo", considerado como uma coisa inferior ou mesmo ruim, e do "espírito", considerado o melhor ou até mesmo a única coisa válida e boa.Nesta perspectiva, a única preocupação importante consistiria em ocupar-se exclusivamente das coisas espirituais, mortificando os sentidos, estimulando o poder da alma, fugindo do mundo, entregando-se a Deus. Essa mentalidade cria um dualismo irreconciliável. Os ascetas do cristianismo primitivo saíram das cidades e refugiaram-se no deserto. Seus seguidores procuravam a vida religiosa pela renúncia às suas posses (pobreza), à vontade própria (obediência) e à sexualidade (virgindade). Evidentemente, esses três pontos de cristalização da vida cristã contêm muitos conteúdos positivos e preciosos. Por este motivo, continuam constituindo - para inúmeros cristãos - motivos e perspectivas essenciais, válidas até hoje.Desde o início, porém, estavam penetradas por um espírito dualista, marcado pelo desprezo do mundo.
Antes de prosseguir nesta procura, temos que esclarecer o termo "secular" de modo mais nítido. Pois, neste contexto, essa palavra não é sinônima nem de "ateu", nem de "secularizado" (cf. Lição 14), mas significa bem outra coisa. Trata-se justamente do contrário! Pois, não é possível encontrar a Deus a não ser no âmbito secular, em "todas as coisas deste mundo", como Inácio de Loyola definiu: quer dizer, nas pessoas humanas com suas preocupações e necessidades, suas alegrias e esperanças, nos animais, nas plantas e nas pedras, nas situações concretas e nas circunstâncias sociais, nos acontecimentos e nas experiências da história. Portanto, a pessoa religiosa não precisa ir ao deserto, subir ao cume de um monte ou refugiar-se no mundo interior da alma (apesar de poder fazer isto também!) para procurar a Deus. Não precisa despedir-se do mundo para encontrar a Deus. Este é o ensino da Bíblia, com a qual estamos comprometidos.
Na história da Igreja é possível encontrar ainda uma outra influência predominante: A realidade como constutuída de duas partes desiguais, ou seja, do "mundo", considerado como uma coisa inferior ou mesmo ruim, e do "espírito", considerado o melhor ou até mesmo a única coisa válida e boa.Nesta perspectiva, a única preocupação importante consistiria em ocupar-se exclusivamente das coisas espirituais, mortificando os sentidos, estimulando o poder da alma, fugindo do mundo, entregando-se a Deus. Essa mentalidade cria um dualismo irreconciliável. Os ascetas do cristianismo primitivo saíram das cidades e refugiaram-se no deserto. Seus seguidores procuravam a vida religiosa pela renúncia às suas posses (pobreza), à vontade própria (obediência) e à sexualidade (virgindade). Evidentemente, esses três pontos de cristalização da vida cristã contêm muitos conteúdos positivos e preciosos. Por este motivo, continuam constituindo - para inúmeros cristãos - motivos e perspectivas essenciais, válidas até hoje.Desde o início, porém, estavam penetradas por um espírito dualista, marcado pelo desprezo do mundo.
O dualismo tem ainda outras raízes que não são nem cristãs. Por isso, não convém que seja um motivo condutor (leitmotiv) para a vida franciscana. O mundo real é a criação de Deus, o lugar onde a glória de Deus se manifesta e que resplandecer. Mesmo sendo verdade que Deus habita na alma humana individual, normalmente costuma agir através da história dos povos. Mostrou-se na sarça ardente a Moisés, para usá-lo como instrumento numa obra histórica e salvífica: devia conduzir o povo de uma situação de opressão e dependência à plena liberdade. Deus está presente nos processos de libertação dos povos e no engajamento em prol de mais justiça e paz. Ele se encarnou (Jô 1) e quer continuar presente no mundo até o fim dos tempos (Mt 28,20). Quem deseja seguir a Deus, tem que seguí-lo mundo adentro.
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