Franciscanismo

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domingo, 22 de fevereiro de 2009

Circular 2009 - Pedro Casaldáliga

O cardeal Carlo Maria Martini, jesuíta, biblista, arcebispo que foi de Milão e colega meu de Parkinson, é um eclesiástico de diálogo, de acolhida, de renovação a fundo, tanto na Igreja como na Sociedade. Em seu livro de confidências e confissões Colóquios noturnos em Jerusalém, declara: «Antes eu tinha sonhos acerca da Igreja. Sonhava com uma Igreja que percorre seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse de raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensem com mais amplidão; que desse ânimos, especialmente, àqueles que se sentem pequenos o pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos». Esta afirmação categórica de Martini não é, não pode ser, uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus.

Ele e milhões de pessoas na Igreja sonhamos com a «outra Igreja possível», ao serviço do «outro Mundo possível». E o cardeal Martini é uma boa testemunha e um bom guia nesse caminho alternativo; o tem demonstrado.

Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, «é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade»; hoje com uma visão e uma ação estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam nossos pensadores, nossos militantes, nossos mártires, nossos famintos...

A grande crise econômica atual é uma crise global de Humanidade que não se resolverá com nenhum tipo de capitalismo, porque não é possível um capitalismo humano; o capitalismo continua a ser homicida, ecocida, suicida. Não há modo de servir simultaneamente ao deus dos bancos e ao Deus da Vida, conjugar a prepotência e a usura com a convivência fraterna. A questão axial é: Trata-se de salvar o Sistema ou se trata de salvar à Humanidade? A grandes crises, grandes oportunidades. No idioma chinês a palavra crisese desdobra em dois sentidos: crise comoperigo, crise como oportunidade.

Na campanha eleitoral dos EUA se arvorou repetidamente «o sonho de Luther King», querendo atualizar esse sonho; e, por ocasião dos 50 anos da convocatória do Vaticano II, tem-se recordado, com saudade, oPacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre.No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas de Domitila, e firmaram oPacto das Catacumbas. Dom Hélder Câmara, cujo centenário de nascimento estamos celebrando neste ano, era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto em seus 13 pontos insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e na acolhida fraterna.

Hoje, nós, na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de jeito nenhum modo podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neoimperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome a uma grande maioria da Humanidade. E seguiremos rechaçando toda discriminação por motivos de gênero, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC...). Comprometemo-nos a vivermos uma «ecologia profunda e integral», propiciando uma política agrária-agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e econômicas, para uma democracia de «alta intensidade».

Como Igreja queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecumênica e macroecumênica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. Chega de fazermos do nosso Deus o único Deus verdadeiro. «Meu Deus, me deixa ver a Deus?». Com todo respeito pela opinião do Papa Bento XVI, o diálogo interreligioso não somente é possível, é necessário. Faremos da corresponsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de descriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja. Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido de nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhida, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da Humanidade. Seguiremos fazendo que se viva na prática eclesial a advertência de Jesus: «Não será assim entre vocês» (Mt 21,26). Seja a autoridade serviço. O Vaticano deixará de ser Estado e o Papa não será mais chefe de Estado. A Cúria terá de ser profundamente reformada e as Igrejas locais cultivarão a inculturação do Evangelho e a ministerialidade compartilhada. A Igreja se comprometerá, sem medo, sem evasões, com as grandes causas de justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anuncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será aquela «expressão mais alta do amor fraterno» (Pio XI).

Nós nos negamos a renunciar a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. «Ainda cantamos, ainda sonhamos». Nós nos atemos à palavra de Jesus: «Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda» (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia a dia de nossas vidas. Seguirá havendo crises e a Humanidade, com suas religiões e suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Foros Sociais, as Vias Campesinas, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afro y, em todo o caso, mais uma vez e sempre, «eu me atenho ao dito: a Esperança».

Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda temos visões, diz a Bíblia (Jl 3,1). Li nestes dias esta definição: «A velhice é uma espécie de postguerra»; não precisamente de claudicação. O Parkinson é apenas um percalço do caminho e seguimos Reino adentro.

 

Pedro Casaldáliga
Circular 2009

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Saudades de Deus

Rev. Frei Yuri, CJ, OASF 
 Ontem, ouvi uma bela música que me chamou a atenção. Ela dizia de alguém que sentia saudades de Deus, fazendo uma alusão ao texto de Agostinho de Hipona, do livro Confissões. A música era suave como o sentimento que me tomou ao escutá-la. Sentir saudades de Deus á algo profundo demais pra gente não se emocionar ao pensar sobre isso.
 
    Sentimos saudades de quem está longe de nós. Ou porque nós fomos para outro lugar ou porque a outra pessoa é quem saiu de perto de nós. Quem tem saudades de Deus, com certeza, foi quem se distanciou do Pai. Deus não se afasta de nós, mas está sempre a esperar que abramos a porta de nossas almas feridas ou intempestivas. No Apocalipse 3,19, O Senhor garante que está à porta e, ainda por cima, bate. É opção nossa abrir ou não as portas para Ele entrar. Deus nos deixa ser livres para escolher sentir alegria, tristeza, solidão ou saudade. Ele é Justo o suficiente para deixar que o ser humano escolha sair de Sua presença. Porém, o Pai não desiste e espera à porta.
 
    Já senti saudades de Deus na minha vida algumas vezes e não sabia que se tratava desse sentimento. As pessoas dão tantos nomes que a gente acredita: depressão, síndrome de alguma coisa, virose e até maldição. Acredito que tudo se resumiria em ausência de Deus no coração e na vida. No dia em que eu passei a perceber que minha única felicidade plena só estava no Senhor, minha vida mudou. Sinto ainda saudades de Deus, mas não é uma saudade de ausência, mas é uma vontade de Infinito imensa.
 
    É um desejo que me toma e me faz querer sempre me ocupar das coisas do senhor, pregando a Palavra ou estando com o povo. O povo manifesta Deus pra gente. Sinta isso!
 
    A música, citando Agostinho, dizia: "Tarde te amei, oh Beleza tão antiga e tão nova...".E nós? Quão tarde teremos que esperar para amar a Deus e ver sua beleza de forma tão sincera? Precisamos sentir saudades de Deus sim! Mesmo estando sempre com Ele! Saudades d´Ele todos os dias, em todos os momentos de nossa existência. Saudade de viver na presença d´Ele, sentindo suas Mãos Santas em nossos ombros cansados...
 
Desejo sucesso a todos!
 
Pax et bonum!

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Fazer ascese por amor

Para que tu, leitor, não me abandones, pela rudeza do título acima, vamos começar com uma historieta. Buddha encontrou, certa feita, um penitente que praticava, há anos, espantosas austeridades corporais. Perguntou-lhe o que pretendia com tanto esforço. O monge disse que desejava desenvolver o poder de caminhar sobre as águas. Sorrindo, o mestre observou-lhe em tom compassivo: "Pouco vais lucrar com isto, com tamanho trabalho e desperdício de tempo. Dá uma pequena moeda ao barqueiro que te levará, gentilmente, para a outra margem do rio". 

Se a historieta te cativou, leitor, vamos continuar. O tema, admito, é árido, mas tem sua importância. Há os que acreditam poder conquistar o céu ao preço de penosas penitências. Enganam-se redondamente. Nós, que admiramos a verdadeira Espiritualidade, acreditamos e sabemos que o céu - a outra margem do rio - é graça de Deus, que será dada para os que vivem em sua graça, e não para os que se vangloriam de caminhar sobre as águas. Deus é o barqueiro que nos levará para a outra margem da vida se não tivermos a presunção duma travessia solitária.

Ascese é uma palavra grega que significa simplesmente exercício. Religiosamente, comporta esforços, renúncias e penitências em vista da perfeição. Fazer ascese é exercitar-se para adquirir musculatura espiritual e poder percorrer com maior desenvoltura os caminhos do bem. Fazer ascese não tem nada a ver com a moderna "cultura do corpo", ou o fisiculturismo.

O verdadeiro asceta, por conseguinte, não é necessariamente magro, esquelético, descarnado. Muitas vezes o é, mas não se pode medir o grau de perfeição ou de espiritualidade pelo seu físico, mas antes pela intensidade de vida em prol dos grandes valores humanos e religiosos.

Em relação à ascese, os mestres espirituais sempre apontaram dois extremos a serem evitados: o do laxismo, que se caracteriza por um horror a qualquer tipo de renúncia ou sacrifício. O laxo é essencialmente um comodista, que só pensa no próprio prazer. É um egoísta sem grande caráter. Não busca forças para elevar-se, lutar, vencer e atravessar o rio. O segundo perigo é o rigorismo que se expressa como violência contra o próprio corpo. O rigorista não se dá descanso, acha que está pecando se sentir algum prazer material e quer atravessar o rio sozinho. Enquanto o primeiro é, via de regra, um glutão satisfeito, o segundo pode fazer-se um penitente carrancudo.

Não é preciso dizer que ambos estão longe do verdadeiro espírito da ascese cristã e dos verdadeiros caminhos da sabedoria humana. O laxo, por ficar aquém do que poderia ser e conseguir, e o rigorista, por perder o bom senso e ir além dele.

A Bíblia não faz a apologia da penitência, mas também não a desconsidera simplesmente. Jesus pregou: "Quem quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga" (Mt 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23). São Paulo parece temer as práticas ascéticas como se depreende da Carta aos Colossenses: "Ninguém, pois, vos critique por causa da comida ou bebida ou em matéria de festa ou de lua nova ou de sábados" (2,16). Denuncia o falso ascetismo de certas proibições que "são preceitos e doutrinas dos homens. Têm ares de sabedoria, mas são regras de afetada piedade, humildade e severidade com o corpo; em verdade não têm valor algum, a não ser para a satisfação da carne" (vv. 22-23).

Em contraposição, a tônica da verdadeira Espiritualidade se centra na consagração e no amor da pessoa a Deus, o que inclui um abandono e uma escolha: "Buscai as coisas do alto e não as da terra" (Cl 3,2) e "mortificai vossos membros terrenos" (v. 5). "Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça" (Mt 6,33). "Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho mas não vos preocupais com o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade" (Mt 23,23)!

A verdadeira ascese, por isto, mais do que um caminho em direção a si mesmo, comporta uma luta em direção aos outros. Faz-se ascese como forma de consagração e amor. A pessoa se purifica para viver mais desimpedidamente pelos outros. Renuncia a coisas válidas para ser mais irmã e companheira.

A Tradição cristã encontrou sua melhor formulação ascética na expressão: "Nudus nudum Christum sequi", ou seja, seguir nu, despojado, o Cristo nu e despojado. Em vista disso, o movimento ascético, penitencial, não é uma operação fechada sobre si mesma, a se stante, como diz o latim. A penitência, em si mesma, não tem religiosamente nenhum valor. Seria apenas uma dieta espiritual, mas que não conduziria a endereço algum. A ascese só tem valor quando feita "por amor de", "em vista a", "em benefício de". Quando recebe apenas o caráter de quem a faz, mas não o endereço de por quem é feita, a ascese é vazia e perigosa, inútil, suspeita e não recomendável.

Por sua natureza, a vida é uma força selvagem, com uma pujança formidável, com majestade apaixonante e beleza muitas vezes cruel. É como um diamante que, para não deixá-la em estado bruto, precisa ser burilado pela ascese. Os pais e educadores fazem isto com as crianças. Os adultos, consigo mesmo.

Con-centrados em nós mesmos, não passamos de indivíduos. Des-centrados de nós e concentrados nos outros, tornamo-nos pessoas. Sobre-centrados em Deus, transformamo-nos em criaturas divinas. Este processo pode ser doloroso e corresponde à tríade espiritual bíblica do jejum (con-centração em si), esmola (des-centração de nós e concentração no pobre) e oração (sobre-centração em Deus).

Mas há outras formas de ascese. Na ascese da fé, a pessoa se aceita com seus dolorosos e insuperáveis limites, fraquezas e misérias, dor e desenganos da vida, e com o desfecho da morte, aparentemente o absurdo e total fracasso da vida. Na ascese moral, a pessoa diz sim ao bem e não ao mal, abraçando e renunciando ao mesmo tempo. Na ascese escatológica, a pessoa alimenta uma constante disposição para a partida e uma iluminada vigilância diante da vida em Deus. Para quem é cristão, existe ainda a ascese da cruz, que consiste em abraçar o escândalo do calvário, identificando-se com o Cristo que não afastou o cálice da dor nem fugiu da idiotice da cruz, fazendo-se obediente à vontade do Pai.

Em conseqüência, parece claro que fazer ascese não consiste em mortificar simplesmente o corpo, mas em morti-ficar (fazer morrer) o velho Adão ou o animal que é egoísta, guloso, violento, preguiçoso e cruel em nós. Fazer ascese consiste em renunciar ao eu não intencionado por Deus e não em tentar ser, simplesmente, mais e melhor.

A verdadeira ascese visa a fazer-nos mais livres, levando-nos a viver mais plenamente. Não procura arrancar qualquer erva daninha em nosso jardim espiritual, mas cultivar os frutos e as flores que ele pode, com a graça de Deus, com a ajuda dos irmãos e com a coragem pessoal, produzir.

Brevemente, eis alguns princípios que orientam o verdadeiro caminho da libertação humana:

1) A ascese é um meio, somente um meio, embora importante e, ao mesmo tempo, doloroso.

2) A ascese tem valor relativo e só é aceitável como serviço de amor e quando leva o penitente a identificar-se com os outros e com o grande Outro.

3) O ser humano tem uma natureza ferida pelo pecado e necessita da graça para resgatá-la e da ascese para fortalecer o homem espiritual e interior.

4) A ascese religiosa objetiva a purificação do pecador e é a contrapartida humana devida ao pecado.

5) A ascese não cria méritos para a graça, mas serve de conditio sine qua non (condição necessitante) para ela.

6) A ascese não é um luxo reservado a poucos, mas é um ideário abraçado por quem quer ser grande.

7) A ascese não faz ninguém santo, mas os santos fazem ascese.

Se alguém, por fazer ascese, se fizer triste e azedo, é melhor que não a faça. É preferível e é mais engraçado um comilão feliz a um atleta espiritual emburrado. Um dos frutos da verdadeira ascese é a alegria. Tanto quanto o comilão feliz, o asceta também sabe cantar. E canta. E canta melhor.

Frei Neylor J. Tonin - Irmão menor e pecador

 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Os Traços do Rosto Franciscano

Nós temos um rosto, rosto conhecido, com traços acentuadamente evangélicos, traços admiráveis em si e admirados por meio mundo. É o nosso rosto franciscano. Ninguém de nós, possivelmente, quererá mudar de rosto. Temos orgulho dele, embora sintamos necessidade de retocá-lo, de tempos em tempos, diante dos espelhos da nossa casa.

Sem nos ocuparmos com o rosto dos outros, que podemos aplaudir mais ou menos, sentimo-nos felizes com o rosto teológico-espiritual-existencial que temos. Este rosto tem muita história, vem lá do fundo dos tempos, e teve um primeiro escultor: São Francisco de Assis, a quem Pio XI chamou de "um quase Cristo redivivo".

Em sua cola, seguiram-se muitos outros escultores, que foram aprimorando os traços do nosso rosto, sempre fiéis à inspiração original. Ele foi tomando sempre mais o jeito do rosto de Cristo. Poderíamos perguntar-nos se não houve deformações, se não se acrescentaram traços estranhos? Não seria o caso de negá-lo.

Mas o rosto continua aquele, que nos encanta e fascina, que nos desafia e provoca. Hoje, com um esforço que já tem seis anos, estamos tentando resgatar os traços deste rosto para nossa ação evangelizadora.

Como franciscanos, qual é a nossa vocação? Nossa vocação, e razão de ser na Igreja e no mundo, é seguir Jesus Cristo, vivendo encantados por ele, como fraternidades evangelizadoras.

Na base deste encantamento vocacional, já não existem, em verdade, perguntas para uma definição, mas tão-somente tentativas de respostas para uma adesão mais superlativa.

Para nós, viver é Cristo. Cristo é a nossa vida. Cristo é nossa vida e morte, é o ar que respiramos, é o chão que queremos pisar.

A qualquer franciscano, pede-se apenas que saiba ler o evangelho vivo que é Jesus, porque Jesus é a palavra que devemos entender e a vida que mais prezamos e desejamos partilhar com todas as pessoas.

Nenhum outro projeto pode, por conseguinte, tomar o lugar de Cristo. Cristo é a forma minorum, o projeto matriz da nossa forma vitae

Por definição, somos arautos do Grande Rei, a ele pertencemos numa aliança de vida e morte. Ele é o tesouro onde deve estar nosso coração.

Como ninguém é avaro e vive só para si, à vocação segue-se o imperativo da missão evangelizadora que é nosso modus vivendi. Vivemos para o Reino, como frades e como fraternidade. O mundo é nosso convento. A evangelização é o nosso apanágio.

Como frades, somos chamados a semear, a ir aos areópagos, a não ter outra missão senão a de pregar o evangelho, curar os doentes e leprosos e expulsar os demônios. Esta é a nossa missão em sentido amplo. Num sentido estrito, nossa missão tem um endereço certo e obedece a uma inequívoca opção: a vida e a casa dos pobres, dos mais pobres.

Estes são, como desde o início foram para São Francisco, os novos e privilegiados areópagos da missão franciscana. Como Cristo, os pobres são o tesouro do nosso coração evangelizador.

Mas para bem evangelizarmos os pobres, temos que evangelizar, primeiro, as nossas pobrezas, mudando e curando as raízes do nosso eu. Isto inclui evangelizar nossos medos e aversões, evangelizar nosso modo pecador de ser e o barro de nossa vida. Em outras palavras, importa ser, fazer-se e sentir-se menor.

E este minorismo que, purificando-nos de ambições e vontades pessoais, de sonhos plausíveis mas não de grupo, dará força para sermos fraternidades evangelizadoras.

» IDENTIDADE FRANCISCANA

Colocadas estas duas premissas - vocação e missão -, podemos nos voltar para a identidade e elencar os valores do nosso modus vivendi e operandi. Podemos perguntar-nos: De onde nasceu a inspiração franciscana para nosso viver e agir?

As Fontes testemunham que o móvel de ser e de agir de Francisco lhe veio, em verdade, de dois exemplos: o de Cristo: crucificado, fora dos muros de Jerusalém, e o dos leprosos execrados, fora das muralhas de Assis.

O primeiro se fez, para Francisco, ordem irrecusável, quando o mandou reconstruir Sua Igreja. E os leprosos, os homens das dores da Idade Média, cobraram-lhe a gratuidade de um beijo, que lhe foi, inicialmente, penoso, mas que, finalmente, lhe encheu a alma de gozo e doçura.

Estes dois encontros abriram-lhe a alma para os grandes valores de nossa espiritualidade: a providência de Deus e o amor pela signora e donna povertá: o relacionamento casto com Clara e com todas as mulheres; a convivência benévola com os irmãos e estranhos, ladrões e sultões, prelados da Santa Igreja e pobres de todas as pobrezas; a cordialidade para com todas as criaturas, lobos e cotovias, riachos congelados e pessegueiros em flor.

Exortava os irmãos a que pregassem a Paz e ensinava-lhes que a única tristeza possível seria a do pecado. Rezava e queria que rezassem. Ele mesmo foi feito uma sarça ardente de oração, porque não só se ajoelhava diante de Deus, como reverenciava até mesmo os indignos ministros do sacratíssimo Corpo do Senhor.

Mesmo sem castelos, foi cavaleiro e tinha um espírito repassado de cortesia. Cultivou dois locais emblemáticos para a espiritualidade franciscana: viveu no estábulo de Rivotorto e na capelinha da Porciúncula. No primeiro tinha a companhia de animais; no segundo, a dos anjos que esvoaçavam em tomo à Santíssima Virgem.

A cada ano, fazia questão de levar dois peixinhos do riacho que corria junto à igrejinha para o Abade de Monte Subásio, deixando claro que a Porciúncula continuava sendo dele, mesmo sendo o berço da Ordem e o lugar afetivo em que cortara as tranças da Irmã Clara. Tinha entranhada devoção filial à Santa Mãe de Deus e ardente paixão pela humanidade de Jesus.

À moda de conclusão, não ignorando as muitas falhas desta sumária lista de valores, diríamos que a identidade franciscana tem as seguintes caraterísticas que lhe dão um rosto inconfundível: ela é casta e livre, é de serviço e de companhia, é misericordiosa e universal, é alegre e de paz. É vertical e horizontal, como uma cruz que é de vida e morte.

Francisco não teve vaidades, jamais foi arrogante, embora a graça de Deus o trabalhasse generosa e visivelmente. Não alimentou sentimentos de inferioridade diante de reis e príncipes, nem foi mesquinho e insensível frente aos necessitados, mas só sentia inveja de irmãos que pudessem ser mais pobres do que ele. "Ao chegar aos pobres, não se contentava em dar-lhes o que possuía.

Desejava dar-se a si mesmo e, quando já não tinha mais dinheiro, entregava suas vestes, descosendo-as ou rasgando-as às vezes para as distribuir" (LM 1,6). Foi firme com os gananciosos e desarmado diante dos poderosos. Paciente nas tribulações e doenças, não apreciava títulos e honrarias e queria que todos fossem simplesmente irmãos. A si mesmo se considerava menor, pecador e indigna criatura do Deus Altíssimo.

Por isso, "seu modo de vida o transformou radicalmente: nas idéias e sentimentos, nas vestes e no comportamento" (LM 2,1). Como arauto do Grande Rei, morreu deixando para a história a imagem de um crucificado e colocando nas mãos de seus seguidores a bandeira da Paz e do Bem.

» A UTOPIA FRANCISCANA

Dentro do mundo dividido por roupas bufantes e andrajos vis, medos e discriminações, classes e guetos, São Francisco entendeu que a mais radical mensagem evangélica vinha do céu, mas tinha que ser construída, aqui, na terra. Cristo trouxe a morte dos exclusivismos, decretou o fim dos privilégios e abriu as portas do banquete para todos, indistintamente.

Na pregação de Cristo, o paraíso não tem cercas. Nem o convento. Por causa do fratemismo. Pobres, doentes e pecadores são os privilegiados destinatários do anúncio da Boa Nova. Com Cristo, o Reino de Deus chegou e são reinagurados os tempos divinos da Fraternidade definitiva. Somos todos irmãos, porque temos todos um Deus que é igualmente Pai de todos.

Isto São Francisco intuiu e quis dar corpo a esta realidade dentro e fora da Ordem..Por isso, não quis que ninguém fosse Abade ou Prior, mas que todos fossem simplesmente irmãos. Fora dos conventos, também. A começar pelos leprosos, pelos pecadores e por Dona Pobreza, todos deveriam ser tratados da mesma forma. IRMÃO, eis o grande título resgatado pela utopia franciscana!

SER IRMÃO é o maior e o único titulo de honra dentro da espiritualidade franciscana. Não só Deus lhe deu irmãos, mas quis que os frades, como irmãos, fossem pais e mães uns dos outros. Uns dos outros e de todas as criaturas.

Outros poderão ostentar nobilíssimos apanágios: o nosso, o apanágio franciscano, é o de ser irmão, dentro e fora dos conventos. Seremos franciscanos, quando irmãos em espírito e de verdade.

Formar um frade é formá-lo para ser irmão. Trabalhar como frade é servir como irmão. Viver como franciscano é viver, teimosamente, como irmão.

Podemos não ter outras virtudes, mas só a falta de fraternismo adulteraria nossa identidade e nos excomungaria da utopia franciscana. Santos seremos e nos santificaremos junto com os outros na cruz da convivência fraterna. O nosso maior pecado, o pecado mortal de nossas vidas, por isso, será o da falta de amor fraterno.

Entre nós, quem não for irmão será um estranho no ninho. O maior elogio que podemos dar a uma pessoa é o de chamá-lo de irmão. Esta é a nossa utopia, a utopia franciscana para a qual devemos, como Província, somar alma e coração.

Frei Neylor, irmão menor e pecador

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Sobre o Livro do Apocalipse

Não há como não nos perguntarmos, quando lemos as páginas do Livro do Apocalipse, este enigmático livro, o que Deus quer nos revelar com ele? Como as coisas dos últimos tempos se passarão?
“Visão do Apocalipse”, usamos esta expressão muitas vezes, diante de uma catástrofe. E é uma catástrofe, de verdade, o que João nos oferece neste Livro. No mundo, nas nossas cidades, vivem os homens e as mulheres, com suas esperanças e seus amores e com seus dramas cotidianos. Gente que ama e gente que morre. O mal aqui está, espalha-se pelo mundo inteiro, em guerras, violências, ódios, mentiras, egoísmos, exclusões... O grito de desespero da criança abusada sexualmente; o choro escondido da mulher espancada dentro de casa; a lágrima solitária do jovem que não encontra emprego, enquanto o dono da fábrica enriquece; a solidão do adolescente homossexual humilhado na escola; a dor do idoso abandonado no hospital; a solidão do mendigo, que já perdeu a esperança e apenas estende a mão... A angústia de quem se descobre soropositivo e tem apenas dúvidas do dia de amanhã; a revolta impotente de quem é vítima de calunias e maledicências... São “visões do apocalipse” para nós tão familiares e são tão cruéis. É o monstro econômico que explora os pequenos e impede o acesso às riquezas da terra, ou o monstro ideológico que alimenta o racismo, o desprezo pelos imigrantes, a nacionalismo egoísta, a violência, a corrupção e a opressão religiosa ou abuso espiritual...
Conhecemos de uma maneira ou de outra o mal do mundo. Entretanto em Jesus, podemos experimentar a paz, podemos conhecer a esperança e viver de fé. Olhamos para Jesus e vemos um Deus que se fez homem, que se banhou em Seu próprio Sangue, Cordeiro Imolado, para nos trazer a Salvação. Olhamos para Jesus e vemos Deus, aureolado com o arco-íris, sinal de glória, um Deus de mão erguida, como Juiz da Misericórdia. Sua Voz é poderosa e nada escapa a Seus Olhos, chamas ardentes, que penetram o mais fundo dos corações e mentes.
Em Sua Boca, a Palavra de Deus é espada afiada, cujo julgamento separa, implacavelmente, o bem do mal, o grão de trigo do joio. Ele é, como Deus, o Primeiro e o Último! Por Sua Ressurreição, entrou na Verdadeira Vida, não nesta vida efêmera, constantemente ameaçada, que é a nossa, mas naquela que é a nossa vida futura, a plenitude mesma de Deus: Ele é o Vivente!
É isto que o Livro do Apocalipse quer nos revelar, é esta convicção que quer implantar em nossos corações e mentes: Cristo é o Vencedor!!, e nós recebemos dele e com Ele esta Vitória! Não uma vitória fácil de quem foge da realidade, mas a rude realidade do Combatente/Testemunha coberto de sangue, do Seu Sangue Redentor. O Apocalipse nos diz que em Jesus Cristo, na Sua Cruz, o mal foi vencido. No Apocalipse ficamos sabendo, vemos, com João, o exilado de Patmos, que o mundo e a humanidade são feitos para a beleza, para a paz, para a Verdade, para a Salvação, pois em Jesus Cristo a criação é recriada. E que um dia, e este dia já começou, os que seguem o Cordeiro, desprezando o monstro da mentira e da maldade, conhecerão a felicidade Eterna, onde toda a Verdade será revelada e não mais haverá choro, pois toda a lágrima será enxugada, e os que seguem o Cordeiro que é Jesus Cristo Glorioso, que traz em si os sinais de Sua Vitória sobre a Cruz, mas que agora está já no Trono e cujo destino passa a ser também o nosso: a Ressurreição e a Vitória final e definitiva sobre o mal e seus adeptos e nós, santificados por Ele, incluídos e reconciliados definitivamente, cantaremos na Glória: “Santo! Santo! Santo! È o Senhor, Deus do universo!”.
Sim, irmãos e irmãs, a mulher atacada é a Igreja que é fiel ao Evangelho, mas que é constituída de homens e mulheres reais, não de anjos, que O testemunha, que bebe do Sangue! Mas a quem o inimigo eterno de Deus, usando outros homens e mulheres, orgulhosos e fracos, tenta destruir; mas o próprio Deus a preserva e ela segue, pequeno rebanho, entre ataques injustos, para a Herança Eterna, para ela preservada desde toda a Eternidade, para receber a recompensa no Céu! O Paraíso definitivo, que mais que um lugar, é a Comunhão definitiva com Jesus Cristo, no Seu Amor Eterno.
O Espírito Santo é aquele que nos rememora e nos ensina as Palavras de Cristo, é Ele quem fala à Igreja, que nos convida, maternalmente, a repousarmos de nossas fadigas, no repouso de Deus. E Ele quem mantém e sustenta a cada um e cada uma de nós na fidelidade ao Cristo; e quem recusa a Verdade do Evangelho que liberta e inclui, são os que cometem pecado contra o Espírito Santo. E o Espírito e a Igreja, a Esposa, dizem ‘Vem!’! É Ele quem murmura no nosso coração as palavras de oração perfeita que devemos dizer. É Ele que guarda esta nossa Igreja Católica e Apostólica, que é a Una e Santa Igreja de Cristo, mas renovada e restaurada, testemunha do Evangelho livre e libertador, o único Evangelho de Jesus Cristo que há, durante sua longa jornada de esperança e fé, mas, sobretudo de amor. É Ele que conosco, exclama: Amém! Vem, Senhor Jesus!”.
Pe Fr Gelson, oasf