Franciscanismo

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sábado, 30 de maio de 2009

FUNDAMENTO BÍBLICO-PROFÉTICO DA MISSÃO FRANCISCANA

COMO FRANCISCO MANDOU ADVERTIR O REI OTÃO

Certa vez, quando queria ensinar a seus irmãos que Deus é o único necessário, São Francisco recolheu-se com eles em Rivotorto. Neste lugar, retirou-se numa cabana abandonada onde procurava o encontro com o Senhor.

 Passava por ali, naquele tempo, o Rei Otão, para receber em Roma a coroa do império terreno. O santo pai Francisco e seus companheiros, cuja cabana ficava à beira do caminho, apesar do enorme ruído e pompa, nem saiu para vê-lo nem permitiu que ninguém olhasse, a não ser um, para anunciar-lhe repentinamente que sua glória ia durar pouco.

 Neste incidente, Francisco se assemelhava a um profeta do Antigo Testamento. Fez como Eliseu que mandou seu servo ao encontro de Naamã, o grande comandante das forças armadas do rei dos arameus (cf. 2Rs 5; Lc 4,27). Também Francisco indicava aos grandes deste mundo onde se encontra a verdadeira grandeza (cf. 1Cel 43).

 

I. INTRODUÇÃO

 

Não pôr outro fundamento senão aquele que está posto

 

"Pois, quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro senão aquele que está posto", eis a intenção de Francisco de Assis (1Cor 3; 11; 1Cel 18). Conscientemente, se identificou com a tradição bíblica. Por isso, o movimento franciscano também terá que incorporar-se na tradição judaico-cristã.

Daí a necessidade de buscar estes fundamentos, talvez desconhecidos, e de estudá-los, caso ainda não estivermos conscientes de sua existência.

1.2. O VERDADEIRO PONTO DE PARTIDA: OS PROFETAS BÍBLICOS

Não é lícito, portanto, deduzir a vida religiosa de uma palavra do Novo Testamento. Mas isto não quer dizer que ela na tenha fundamento bíblico algum. As suas raízes, pelo contrário, mergulham profundamente na tradição bíblica. Em última análise, remontam ao movimento profético do povo de Israel, destinado a alcançar o seu ponto máximo em Jesus e seus discípulos, para desembocar depois na vida religiosa, na qual recebeu as mais variadas expressões, sendo uma delas a forma escolhida por São Francisco.

II. VISÃO DE CONJUNTO

Livrar-se de noções errôneas sobre os fundamentos bíblicos da missão franciscana

A pergunta pelos fundamentos bíblicos da missão franciscana merece mais do que uma resposta superficial. Veremos que será necessário primeiro acabar com noções errôneas antes de atingir o essencial. A vocação do movimento franciscano situa-se no mesmo nível que a vocação do povo de Israel. Trata-se de uma aliança que Deus conclui com um povo. Este povo lhe será obediente, vivendo em comunhão amorosa com o Senhor e conduzindo outros a Deus pelo serviço sacerdotal, visto que será repleto da santidade de Deus.

A partir deste fundamento, será necessário falar dos profetas e das comunidades proféticas. Surgiam cada vez que Israel se mostrava infiel à sua vocação.

Observando atentamente, é possível constatar que Jesus e a Igreja primitiva estão incorporados, igualmente, à tradição profética. A vocação de Israel se cumprirá em uma Nova Aliança.

Enquanto a Igreja ainda não perdera o seu vigor, enfraquecida pelo inter-relacionamento com a sociedade profana, não havia necessidade de uma vocação profética. Essa necessidade surgiu a partir de um acontecimento histórico quando, no ano 325 dC, durante o império de Constantino, o cristianismo foi declarado religião do Estado. A partir daí, voltaram a aparecer pessoas que assumiam a tarefa dos profetas; ou seja: religiosos e religiosas, que procuravam manter-se fiéis aos ideais da Igreja primitiva e pautavam o seu estilo de vida de acordo com esse modelo.

Finalmente, será preciso perguntar qual o lugar que Francisco ocupa dentro desta tradição profética e, derivadas daí, quais as exigências que se apresentam à família franciscana. 

2.1 OUVIR

Se o povo de Deus não for um povo atento, capaz de ter o ouvido apurado para distinguir a voz de Deus, então de deixa de existir como povo. A palavra hebraica "ouvir" (= shamah) é a mesma que "obedecer", "responder". O elemento constitutivo, portanto, que faz do povo um "povo de Deus", é, em primeiro lugar, a abertura para Deus, e o tempo que emprega para ouvir o que a voz de Deus declara, aqui e agora.

2.2. MANTER A ALIANÇA

É difícil explicar exatamente o significado da palavra hebraica berith (= aliança). Paulo, por sua vez, a traduziu pela expressão grega diatheke que quer dizer: "testamento". Indica o mistério que há no nosso relacionamento com Deus e entre nós. Porém, como exprimir o inexprimível, como captar por palavras o profundo mistério da vida? No Antigo Testamento, muita gente se esforçou por fazê-lo, lançando mão de comparações. Oséias compara a relação entre Deus e a humanidade como o relacionamento de amor que deve existir entre homem e mulher. Duas pessoas humanas que se unem para uma vida em comum, não somente pela sua proximidade sexual, pela qual celebram seu amor, mas pela totalidade de sua vida partilhada. Oséias, porém, reconhece que essa comparação é insuficiente. Começa, então, a utilizar outra imagem:apela ao amor dos pais pelos filhos (Os 11). Talvez fosse possível traduzir a palavra berith por "comunidade". Mas também esta palavra tem vários significados. Parece isto inevitável, uma vez que também a nossa relação com Deus é multifacetada e pluriforme. Os israelitas, assim como nós também, precisavam buscar sempre novas expressões para descobrir o que significa ser "o povo de Deus". Nós, tampouco, somos capazes de explicar o que significa pertencer a um povo que fez aliança com Deus. Por isso, temos de procurar sempre novas maneiras de celebrar e de viver essa aliança. Somente assim outras pessoas podem chegar, um dia, a entender porque somos como somos. Então chegará hora deles, de questionar a própria vida. 

2.3. SER SACERDOTAL

Acabamos de dizer que a Aliança tem quer ser celebrada. O povo de Deus precisa ser um povo sacerdotal. Em outras palavras: precisa transmitir a realidade de Deus. A maneira como nós vivemos conduzirá outros a reconhecerem o Deus invisível. É a comunidade que tem que ser capaz de chamar a atenção dos outros para que cheguem a captar a presença de Deus vivo. Conseguirá isto à medida que vive, ama, confia, partilha e celebra junto. Portanto, é preciso estar consciente do fato de que uma existência verdadeiramente sacerdotal inclui necessariamente o anúncio da Boa-nova. Seu significado é: chamar a atenção de outras pessoas para o Deus vivo de Amor e conduzi-los a entregar-se a Ele. Isto acontece não tanto por meio de palavras, quanto maneira de viver.

2.4. SER SANTO

Essa forma de vida dever santa. Na Bíblia, "santidade" significa: pertencer a Deus, saber-se acolhido pela realidade de Deus, participar de sua vida e de seu amor, estar submerso naquele outro, totalmente diferente, que é Deus.

Santidade significa também: olhar a vida e o mundo a partir do ponto de vista de Deus, procurar um estilo de vida que tenha como referência este ponto de vista. Assim, o círculo se completa: o mergulhar na realidade Deus equivale a um contínuo escutar a voz de Deus .

Até um dos profetas mais sublimes, Elias, teve de aprender que Deus não falar sempre do modo como a gente gosta ou pensa (1Rs 19). Esperava que Deus se manifestasse ao seu povo através de uma grande tempestade, de um terremoto ou de um incêndio. Esperava um linguagem que abalasse e assustasse. Deus, porém, não quis manifestar-se assim. A sua linguagem foi semelhante a "uma brisa suave e amena". Só pode ouvir bem quem estiver aberto a todas as possibilidades que Deus usa para manifestar-se. Somente assim, um povo pode ser santo. Somente assim, é capaz de ser um povo que fez aliança com Deus.

3. OS SACERDOTES

Havia, no povo, um grupo especial de pessoas, destinadas quase profissionalmente a "ouvirem a voz de Deus". Eram os sacerdotes. A sua tarefa primeira era: anunciar a torah. Infelizmente, o judaísmo ulterior confundiu, com freqüência, torah e Lei escrita. Assim surgiu a impressão errônea de que tudo o que Deus quis manifestar já estava contido integramente na Lei. No início, não era assim: a palavra torah será sinônimo de Vontade de Deus.

Uma segunda tarefa, menos importante, dos sacerdotes era o culto religioso. Porém, quando o culto começou crescer em importância, assumindo o primeiro lugar, o anúncio da torah teve que sofrer. O sentido da liturgia é: ajudar o povo a celebrar o seu relacionamento com Deus e o relacionamento entre si. Por desgraça, quando a torah já não era mais conhecida, também não se tinha mais clareza sobre esse relacionamento. Sem a torah, sem a procura atenta da vontade de Deus, o ritual litúrgico começou a esvaziar-se, não passando de um invólucro vazio e de uma série de fórmulas sem sentido. Aí o povo chegou a imaginar que seria possível manter Deus favorável por meio de manipulações. Nesta hora, o culto religioso deixou de ser a expressão de um relacionamento vivo e real.

A perda da vocação sacerdotal conduziu a uma crise de identidade do povo hebraico:

"Pois, na realidade, o meu processo é contra ti, ó sacerdote. Tropeçarás de dia, e de noite tropeçará contigo também o profeta... Meu povo será destruído por falta de conhecimento. Por teres rejeitado o conhecimento, eu te rejeitarei do meu sacerdócio; por teres esquecido o ensinamento de teu Deus (= torah), eu também me esquecerei de teu filhos" (Os 4,4-6).

"Conhecer" (= yada) não se refere a um conhecimento teórico, mas ao conhecimento de uma pessoa, que pode chegar até o ponto de fundir duas vidas em uma só. No seu significado mais profundo, esta palavra é usada para celebrar a unidade total entre homem e mulher: "O homem, Adão, conheceu Eva, a mulher" (Gn 4,1). O problema, visto por Oséias, não era o conhecimento insuficiente do "catecismo", por parte do povo, mas o fato de o povo ter deixado de amar a Deus. "Suas obras não lhe permitem voltar para o seu Deus, pois um espírito de prostituição está dentro deles, e eles não conhecem o Senhor" (Os 5,4).

Esta mesma significação impregna as palavras de São Paulo, quando escreveu, anos depois de sua conversão: "Anseio pelo conhecimento de Cristo" (Fl 3,10). Não se queixa de não ter bastante tempo para prosseguir nos seus estudos cristológicos, mas anseia por uma intimidade mais profunda com o Senhor.

4. OS PROFETAS

Mais uma vez: os sacerdotes descuidaram do anúncio da torah. Como conseqüência, o povo já não "conhecia" mais o seu Deus, isto é, não vivendo mais em união amorosa com Ele, submergiu em uma profunda crise de identidade. Era preciso que Deus mesmo interviesse. Chamou os profetas. A tarefa deles era: recordar aos sacerdotes a sua obrigação primitiva. Devia reconduzir o povo à sua vocação primeira, vale dizer, à vocação de constituir um povo que ouça, que vive em comunhão com Deus, de maneira sacerdotal e santa.

Um profeta é uma pessoa que "não permite que os meios sejam utilizados como fins, e que ritos exteriores sejam celebrados tendo por finalidade a si mesmos; (um profeta) é uma pessoa que nos lembra, continuamente, que a verdadeira significação do tempo presente está escondida no futuro, ou em um nível mais elevado; é uma pessoa que persistentemente aponta para o Espírito, oculto atrás de todas formas exteriores e além de todas as letras escritas" (Y. Congar).

Os profetas surgem em tempo oportuno. "Sob que condições podem surgir profetas? Pode-se responder muito simplesmente: cada vez que há falta deles! Porém, quando é que fazem falta? Em épocas em que a comunidade esquecia a sua vocação, ficando, de certo modo, inativa e presunçosa. Pois, isto a torna incapaz de cumprir a sua missão, não percebendo mais em que consistia essa missão. Cada vez que o povo alcançava um bem-estar terreno, por meio de guerras, de política hábil ou de comércio lucrativo, sucumbia à tentação de esquecer a sua dependência ao chamado de Deus, perdendo assim a sua razão de ser. Então, já não tinha consciência da sua vocação de povo de Deus e acabava acreditando pertencer somente a si mesmo, tendo Deus, porém, ao seu lado. Nestas horas, a missão dos profetas consistia, essencialmente, na obrigação de reconvocar o povo à sua vocação" (R. Haugthon).

4.1 PROFETAS INDIVIDUAIS

Sempre de novo, surgiam grandes personalidades, repetindo e relembrando o chamado profético ao povo. Infelizmente, costumamos automaticamente associar a idéia de "profeta" ao conceito: "palavra" ou "sermão". Porém, antes de falar com a boca, o profeta verdadeiro dava testemunho pela sua vida. Não teria credibilidade se ao seu estilo de vida não fosse como um espelho que refletia a mensagem que recebeu para transmitir.

A mensagem essencial dos profetas, portanto, reflete-se na intensa e ininterrupta convivência com Deus. Além disso, Deus convoca os profetas para que realizem ou deixem de realizar certos atos, desafiando assim o povo. Oséias, por exemplo, mostra o seu coração alquebrado e apreensivo por causa da infidelidade de sua esposa, dando nomes aos seus filhos, que chamam a atenção do povo. Um é chamado: Lo-ruhama (= "desapareceu o amor") e outro: Lo-ami (= "a aliança foi rompida"). Isto constituiu um verdadeiro desafio ao povo, exigindo dele que repensasse o seu relacionamento com Deus (Os 1,8; ver também Jr 13 e 16 e Ez 4; 5; 12 e 24).

O profeta Jeremias deu um sinal sobremodo impressionante (Jr 13). Foi obrigado por Deus a passar pela cidade, mostrando o seu cinto sujo, malcheiroso e semi-apodrecido, quer dizer, uma peça de roupa que normalmente se colocava sobre o corpo como sinal da íntima união existente, ou seja, que deveria existir entre Deus e o seu povo de Israel.

Em outras palavra: Jeremias procurava abalar o povo, que já havia abandonado a proximidade de Deus, afastando-se para longe dele, chegando a ser um povo sujo, fedorento, apodrecido, por causa dos seus pecados e das suas infidelidades. No capítulo 16, Jeremias dá toda uma lista de possibilidades, desafiando o povo mais pela sua vida do que pelas suas palavras. Também Ezequiel (cf. Ez 4; 5; 12; 24) chegou a colocar um sinal por sua vida e suas ações, denunciando a preguiça, a superficialidade, auto-suficiência e a falsa escala de valores do povo.

4.2 AS COMUNIDADES PROFÉTICAS

Existiam também comunidades proféticas, que davam testemunho profético através de sua vida comunitária e de um certo estilo de vida. Por exemplo, os discípulos de Isaías separam-se do povo para ouvir e interiorizar a palavra profética. Queriam servir de "sinais e presságios da parte do Senhor todo-poderoso" (Is 8,18).

Um outro tipo de comunidade profética foi formado pelos nazireus, dos quais conhecemos ainda as regras e os estatutos (Nm 6). Deviam abster-se de vinho e de qualquer bebida alcoólica. Essa renúncia visava relembrar ao povo a caminhada pelo deserto, quando vivia como nômade, privando-se do vinho e de muitas outras amenidades que uma vida normal de camponeses sedentários oferecia. Pois a boa vida afastava o povo da fidelidade e da abertura para Deus. A segunda proibição: "Enquanto durar o voto de nazireato, a navalha não passará sobre a cabeça" (cf. Nm 6,5) visava o mesmo fim: o povo devia recordar-se do tempo em que vivia sob condições primitivas no deserto. De fato, é possível deduzir o quanto o povo se sentiu questionado pelo estilo de vida e o modo de proceder dos nazireus, pois tentou fazê-los calar (cf. Am 2,11s).

Outra comunidade profética nos é dada a conhecer através de Jeremias (Jr 35). Os recabitas que não somente renunciavam ao vinho, mas viviam como verdadeiros nômades: "Nunca bebemos vinho, nem nós, nem nossas mulheres, filhos e filhas, não construímos casas para morar, nem possuímos vinhas, campos ou sementeiras; mas vivemos em tendas" (Jr 34,8). Foram sinais vivos, recordativos, das origens do povo de Israel, o êxodo do Egito e a caminhada pelo deserto. O povo de Israel, comparado à esposa de Javé pelo profeta Oséias, recordava constantemente, com uma certa saudade, aquele tempo ideal: "Por isso, eu mesmo a seduzirei, conduzirei ao deserto e lhe falarei ao coração... Lá ela responderá como nos dias da juventude, como no dia em que subiu do Egito" (Os 2,16-17).

É o mesmo testemunho que ainda podemos ouvir no Novo Testamento:

"Mas tenho contra ti que deixaste o primeiro amor. Considera de onde caíste, arrepende-te e pratica as primeiras obras" (Ap 2,4-5).

O testemunho profético não exigia dos outros que imitassem o estilo de vida da comunidade profética. Porém, a sua forma de vida devia servir de desafio, estimulando o povo a uma maior doação e à reordenação das suas prioridades.

4.3 COMPROMISSO PROFÉTICO EM FAVOR DOS POBRES E DA JUSTIÇA

Vimos que os profetas, assim como as comunidades proféticas, procuravam fazer valer de novo, nas suas vidas e pela pregação, a torah, quer dizer, a vontade de Deus. Essa vontade de Deus, porém, não pode ser cumprida, enquanto os ricos exploram os pobres. Por isso, os profetas questionaram não somente elementos do culto judaico, mas até o próprio culto. "O povo celebrava assim o seu estilo de vida, menosprezando a vontade de Deus, que se colocava de modo inequívoco do lado dos pobres" (B. Flammer).

"Procurai-me e viverei! Mas não procureis Betel, não entreis em Guilgal", profetizou Amós (Am 15,4-5). Portanto, o que conta não é uma piedade desligada da responsabilidade social, nem é um culto religioso que serve unicamente à auto-afirmação do povo, nem são os lugares sagrados onde os pobres não tem vez.

"Procurar por Javé, o advogado dos pobres, é a mesma coisa que fazer justiça ou superar o prejuízo causado aos pobres e fracos. Um verdadeiro culto a Deus cria justiça social. No meio das celebrações do povo, quando a música inundava tudo e os coros enchiam o ambiente com seu júbilo, quando a gordura dos animais imolados em sacrifício escorria pelas ruas da cidade, o profeta Amós reagiu: 'Que o direito corra como a água e a justiça como rio caudaloso' (Am 5,24)" (B. Flammer).

Em toda a literatura profética do Antigo Testamento, reencontram-se sempre os mesmos temas fundamentais: o verdadeiro culto a Deus manifesta-se no serviço aos pobres, no senso comum (= hesed) e no engajamento em uma verdadeira justiça entre os homens.

5. A INTENÇÃO PROFÉTICA DO NOVO TESTAMENTO

O povo do Antigo Testamento foi sempre reconvocado à fidelidade por personalidades ou grupos proféticos, que lhe relembravam sua vocação primeira. Será que o Novo Testamento trouxe algo de totalmente novo, ou será que acabou alinhando-se nitidamente, nesta tradição profética? 

5.1 JESUS E SEUS DISCÍPULOS 

Dentro da jovem comunidade cristã, Jesus foi considerado um profeta. E ele mesmo assumiu sua tarefa como tal, de outro modo não poderia ter declarado: "Só em sua pátria e em sua casa o profeta é desprezado" (Mt 13,57). Ele e aqueles aos quais se dedicava reconheceram que a sua missão estava na linha do carisma profético (Mt 16,24; 21,11.46). Como um profeta, juntou discípulos em volta de si, visando derrubar o legalismo e a autoridade absoluta das instituições da religião judaica e animando o povo a retornar à sua vocação original:

"Ele lhe disse: 'Amarás o Senhor teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. Mas o segundo é semelhante a este: Amarás o próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas'" (Mt 22,37-40).

Não é nenhuma doutrina nova, mas uma citação textual da Sagrada Escritura dos judeus (Dt 6,5; Lv 19,18).

Convocava os seus discípulos a uma comunidade de amor:

"Eu vos ordeno que vos ameis uns aos outros" (Jo 15,17). "Um novo preceito eu vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Todos hão de conhecer que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros" (Jo 13,34).

Portanto, Jesus viver com seus discípulos, dentro da comunidade judaica, a vocação original do povo de Israel. Importa ainda chamar a atenção para dois outros fatores:

- Jesus e os seus discípulos religavam sua vida à existência de muitos grupos proféticos. Obrigava-os a deixar tudo: a própria casa, a família, tudo quanto possuíam. Jesus não tinha onde reclinar a cabeça. Juntos peregrinavam pelo país, como um grupo profético, anunciando a Boa-nova aos pobres (Lc 4,16-30), partilhando a sorte deles. Queriam trazer a paz do reino de Deus, renunciando a toda violência e legando a paz no próprio coração. Os meios correspondiam ao objetivo.

- Como os profetas do Antigo Testamento, também Jesus e os seus discípulos, assumiram a causa da justiça e dos pobres, que - carentes de qualquer esperança terrena -, esperavam tudo só de Deus. Contra os representantes oficiais do judaísmo, Jesus colocou-se junto com os seus seguidores, ao lado dos pobres. Convém verificar o quanto esta atitude se integra na tradição profética. A prova disso é a expulsão dos vendedores do templo. "Está escrito: 'Minha casa será chamada casa de oração'" (Mt 21,12-13) e não uma casa onde os forasteiros e os pobres estão sendo discriminados (cf. Is 56,1-8).

5.2 A IGREJA

Para caracterizar a relação íntima existente entre Jesus e os seus discípulos, São Paulo utiliza a palavra koinonía. Esta palavra foi traduzida muitas vezes por "comunidade" ou "comunhão". Na Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento, a palavra koinonía é utilizada unicamente para indicar pessoas que colaboram numa mesma obra ou numa mesma ação. Paulo, porém, emprega esta expressão ao falar da comunidade, onde o Filho de Deus entrou para transformá-la numa koinonía. As relações dentro de um tal grupo, são tão estreitas e densas que se dizia: somos uma koinonía no Espírito:

"O que vimos e ouvimos, nós também vos anunciamos, a fim de que também vós vivais em comunhão (koinonía) conosco. Ora, nossa comunhão (koinonía) é com o Pai e seu Filho, Jesus Cristo" (1Jo 1,3).

A realidade fundamental da Igreja é: ser comunidade, povo, koinonía, Corpo de Cristo. A Palavra de Deus nos convida a isso. Foi essa a finalidade pela qual Jesus veio ao mundo. A Igreja não tem outro sentido. Paulo teria ficado consternado se lhe fosse dado ouvir religiosos modernos falarem: "Vamos formar uma comunidade!" Se fossem capazes de fazer isso sem o Senhor, então a vinda de Jesus teria sido supérflua. Porém, somente Ele é capaz de formar comunidades, reconciliando judeus e pagãos.

"Pois, é Ele a nossa paz. Ele, que de dois fez um só povo, derrubando o muro de separação, a inimizade, em sua própria carne; anulando a Lei dos mandamentos expressa em decretos, para fazer em si mesmo, dos dois, um só homem novo, estabelecendo a paz e reconciliando ambos com Deus num só corpo pela cruz; e matando em si mesmo inimizade" (Ef 2,14-16).

Compete a nós celebrar isto e realizar na vida aquele projeto que o Cristo nos trouxe. São Lucas o entendia assim:

"Freqüentavam com assiduidade a doutrina dos apóstolos, as reuniões em comum, o partir do pão e as orações" (At 2,42).

Esta descrição constitui o modelo fundamental para todas as comunidades eclesiais, nos primeiros dois séculos. Viviam como Igreja clandestina. Era perigoso ser cristão. Ajudavam-se mutuamente e viviam segundo o Evangelho. Os quatro evangelhos surgiam para ajudar as comunidades a viverem como koinonía, como Corpo de Cristo. Foram escritos pela comunidade e para a comunidade, para darem respostas às suas próprias perguntas.

Como os homens do Antigo Testamento, também os cristãos responderam ao chamado de Deus. Queriam estar atentos à voz de Deus, vivendo em íntima união com Ele, transmitindo, por uma ação sacerdotal, uma imagem fiel d'Ele estando imersos na santidade divina. Naquela época não havia necessidade de comunidades proféticas, pois a Igreja, ela mesma, era a única comunidade profética.

6. AS ORDENS RELIGIOSAS COMO COMUNIDADES PROFÉTICAS

Como surgiram as Ordens religiosas? Qual a sua finalidade dentro da Igreja?

6.1 UMA SITUAÇÃO MUDADA

No início do século IV, a situação da Igreja mudou profundamente, a partir do Imperador Constantino, e mais tarde, sobretudo, quando o cristianismo foi declarado "religião do Estado".

A Igreja não tinha mais necessidade de viver clandestinamente. Já não era oprimida ou perseguida, mas, pelo contrário, tornara-se um lugar de refúgio para todos. Para poder ser funcionário do Estado ou trabalhar em qualquer repartição pública, era preciso ser membro da Igreja. Na mesma proporção em que crescia o número de cristãos, crescia igualmente o grau de mediocridade e de superficialidade na fé.

A decadência da vida cristã levou à necessidade de inventar uma quantidade de estruturas, instituições e organismos, grandes casas e muitos ofícios, para organizar esta multidão. A Igreja primitiva de tudo isto não precisara, de maneira que não existiu nenhuma vida religiosa nos primeiros séculos do cristianismo, exceto alguns eremitas e profetas solitários, mas não havia ainda uma vida religiosa estruturalmente organizada.

6.2 O MODELO DA IGREJA PRIMITIVA

Começou, então a repetir-se a mesma evolução que já havida se dado no Antigo Testamento: a institucionalização e a profecia condicionavam-se uma à outra. Os chefes da Igreja mantinham uma máquina bem lubrificada, em vez de fomentar as comunidades na koinonía. Fazia-se necessário que alguém viesse relembrar à Igreja a sua finalidade. Surgiu então a vida religiosa.

Pessoas isoladas começaram a se dar conta da diferença entre a vida da Igreja que conheciam e a das comunidades primitivas. Procuravam, então, espontaneamente, imitar o ideal descrito nos Atos dos Apóstolos:

"E todos que tinham fé viviam unidos, tendo todos os bens em comum. Vendiam as propriedades e dos bens e dividiam com todos, segundo a necessidade de cada um. Todos os dias se reuniam unânimes no Templo. Partiam o pão nas casas e comiam com alegria e simplicidade de coração, louvando a Deus entre a simpatia de todo o povo. Cada dia o Senhor lhes ajuntava outros a caminho da salvação" (At 2,44-47).

Portanto, as primeiras formas de vida religiosa pautaram-se pelas primeiras comunidades, como notou João Cassiano, no século IV. Escreveu que os primeiros religiosos se separavam do povo "para praticarem aquilo que os Apóstolos haviam ordenado a toda a Igreja" (Conf. 18, cap.5). Em outras palavras: estes grupos se segregavam da comunidade maior para viverem o carisma profético.

"São esses dois aspectos, aparentemente contraditórios, que caracterizam o profeta: é membro da comunidade, sentindo-se , ao mesmo tempo, distanciado dela. A imagem clássica do profeta, que se afasta para viver no deserto, exprime isto. De um certo modo, está livre das estruturas, obrigatórias em qualquer comunidade normal... Os profetas são chamados para fora da comunidade para falar à comunidade" (R. Haughton).

Entre todas as tarefas da vida religiosa, a primeira é a obrigação de reconvocar a Igreja à fidelidade ao Evangelho. Sem esse aspecto privilegiado, a Vida Religiosa degenera ao nível de mero trabalho social ou uma ocupação assalariada barata, perdendo assim sua razão de ser original e essencial.

Por causa do seu papel profético na Igreja, as Ordens religiosas se mantêm numa relação de certo modo tensa face à instituição. Isto acontece cada vez que as estruturas desta última se enrijecem ou quando se concentram exclusivamente no esforço de manter sua posição privilegiada de liderança. Portanto, o perigo de que a instituição possa procurar assimilar a vida religiosa é sempre atual e presente.

O profeta é uma pessoa incômoda. É hostilizado porque questiona as estruturas vigentes de poder que dificultam a evolução da vida e deixar de servir à humanidade. Isto pode acontecer tanto no âmbito político como no âmbito eclesial. Desde sempre os profetas incomodaram os outros a ponto de serem desprezados, perseguidos e até mortos.

Foi esta a sorte de muitos profetas do Antigo Testamento; e essa foi também, de modo especial, a experiência de Jesus: "Os seus não o receberam" (Jo 1,11). À medida que assumirmos verdadeiramente a nossa tarefa profética dentro da Igreja e da sociedade, será a nossa vez de fazer essa experiência. Mas também o contrário acontece: se, por acaso, gozarmos de benevolência e simpatia dos poderosos e influentes na Igreja e na sociedade, teremos de perguntar-nos a nós mesmos se estamos a ponto de descuidar e de trair a nossa missão profética.

7. FRANCISCO DE ASSIS E O SEU MOVIMENTO

Os historiadores frisam que Francisco constituiu, com seu movimento, a força renovadora mais importante da Igreja medieval. Porém, como será possível interpretar esta força? E que importância continua tendo para todos os que ainda hoje têm seu ponto de referência em Francisco?

7.1. O ELEMENTO PROFÉTICO EM FRANCISCO DE ASSIS

Aquilo que Francisco fez é algo que tem a ver com a Igreja inteira. Isto se tornar clara a partir do acontecimento que seu na igrejinha de São Damião, quando lhe foi ordenado pelo Crucifixo: "Francisco, vai e repara minha casa que, como vês, esta toda destruída" (2Cel 10). Inicialmente, Francisco tomou esta ordem ao pé da letra, restaurando três pequenas igrejas. Somente mais tarde, entendeu tratar-se realmente da renovação da Igreja sobre o fundamento que Jesus havia estabelecido. Francisco, portanto, estava bem consciente de que sua primeira tarefa consistia em relembrar o Evangelho à Igreja e a viver as exigências nele contidas. Sua comunidade de frades formava uma ecclesiola, uma mini-igreja, formada segundo os critérios do Novo Testamento. O que Francisco visava era um retorno incondicional ao Evangelho. Apesar de não denunciar publicamente os erros e até a irrelevância da Igreja do seu tempo - pois nem o clero nem a hierarquia jamais ouviu acusações condenatórias de sua boca -, mesmo assim Francisco e os seus irmãos foram testemunhas vivias e sensibilizadoras da própria essência da Igreja.

Assim, a reminiscência da tradição profética estava bastante clara. Mais evidente torna-se quando lembramos que Francisco imitava o comportamento dos profetas do Antigo Testamento, perambulando pelo país como profeta nômade, assim como também Jesus o havia feito com os seus discípulos. A ausência de qualquer tipo de posse, a instabilidade de vida, a pregação da penitência como chamado à conversão, a solidariedade com os pobres e deserdados, são todos sinais distintivos não somente dos profetas bíblicos, mas também de Francisco e do seu movimento na sua fase inicial.

De fato, não era a Igreja primitiva, descrita nos Atos dos Apóstolos, que estava à base do modelo primordial de Francisco. Antes, refere-se muito mais ao estilo de vida assumido por Jesus e seus discípulos, descrito por Mateus (cap. 10) e Lucas (cap. 9 e 10), no "sermão do envio". Assim, Francisco demonstra que ele está unicamente preocupado em obedecer aos objetivos de Jesus.

7.2 O ELEMENTO PROFÉTICO EM CLARA DE ASSIS

No mosteiro de São Damião, Clara e suas companheiras realizaram, a seu modo, a vida conforme o Evangelho. Numa sociedade que avaliava as pessoas de acordo com suas posses ou sua ascendência na escala social, a comunidade de São Damião não reconhecia esse tipo de diferenças. Com razão, poderia ser chamada de o germe inicial de uma igreja fraterna.

Livre de qualquer coação social ou tradicional, exercida por estilo de vida que - naquela época - marcaram a sociedade ou a vida conventual, a comunidade fraterna de São Damião concedeu a cada um de seus membros a mesma dignidade. Simultaneamente, exigia de cada irmã o delicado respeito mútuo para com todas as suas companheiras. Assim, este grupo de mulheres possibilitou o surgimento de um novo modo de relacionamento interpessoal. O sinal característico e distintivo dessa nova relação foi o simples tratamento por "irmã"; Era uma palavra nova no vocabulário conventual do século XIII. Tanto para Clara como para Francisco, o elemento fraterno era fundamental. Assim as Irmãs de São Damião se incorporaram num grupo de mulheres que procurava um novo lugar na realidade social e eclesial.

Um novo sinal distintivo da comunidade fundada por Clara é sua relação com qualquer propriedade. Pediu ao Papa o privilégio da pobreza absoluta. Era costume que os mosteiros solicitassem dos pontífices privilégios que, via de regra, visavam o direito de manter ou aumentar suas posses ou seus poderes. Clara, pelo contrário, pediu ao Papa que sua comunidade tivesse o direito de viver sem qualquer tipo de posse, apresentando, com isto, um sinal profético. Depois, porém, teve que lutar contra vários Papas quase até i fim de sua vida até alcançar o direito de viver esse privilégio.

7.3 HOJE O MOVIMENTO FRANCISCANO CONTINUA PROFÉTICO

Depois do Concílio Vaticano II, ou seja, durante o Capítulo Geral de Madri (1973), os franciscanos produziram um documento onde confirmam: "Acolhendo na fé o Evangelho de Cristo, Francisco teve consciência de estar sendo enviado com seus irmão ao mundo para testemunhar, opor seu gênero de vida e proclamar pela palavra a conversão ao Evangelho, a chegado do reino de Deus e a manifestação de seu amor entre os seres humanos. A consciência desta missão lhe dava o dinamismo espiritual, a mobilidade, a audácia e a coragem a todas as partidas..." (Madri 1973, § 3).

No mesmo documento, vem sublinhada a dimensão profética da vida franciscana:

"Certamente, nossa forma de vida, na medida em que for vivida, é uma forma de contestação à mediocridade e às insuficiências das estruturas" (§ 9).

"A missão essencial da nossa fraternidade, sua vocação na Igreja e no mundo, consiste na realização vital do nosso projeto de vida... Nossa contribuição à construção da Igreja e da humanidade se resume, em primeiro lugar, nisso: é por nossa vida antes de tudo que daremos testemunho" (§ 31).

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