Franciscanismo

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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Espaço de estudo

A devoção natalina de São Francisco e Santa Clara

Para reencontrar a nossa "secularidade", deveríamos procurar responder à pergunta por que Francisco considerava o Natal "a festa das festas" (2Cel 1 99).
Para muitos teólogos, essa afirmação é uma aberração da piedade popular. No seu parecer, a época pascal (de Sexta-feira Santa até Pentecostes) constitui o ponto alto
do Ato litúrgico. De fato, em muitas partes, a festa de Natal foi reduzida a um acontecimento folclórico, sentimental e sem compromisso, uma espécie de fuga da realidade a um mundo tanto interior quanto irreal, que não tem nada que ver com a verdadeira vida.
É possível, porém, ver o Natal também de uma outra maneira. Nas suas teses, o teólogo franciscano Duns Scotus partiu teologicamente do amor de Deus. Deus se identifica de tal modo com o Amor que não pode ser entendido como isolado ou único. Não é, portanto, "um ser que existe para si mesmo", como foi formulado por vários filósofos. Pelo contrário, Deus é total doação, total entrega. Por isso, quer um mundo onde as criaturas amem a si mesmas e aos outros, formando uma única criação interdependente, que constitui uma espécie de rede, uma realidade definida pelas suas relações mútuas e não pelas suas delimitações e separações. Por este motivo, de um modo insuperável, Deus mesmo se fez presente numa criatura: Jesus de Nazaré. Através dele, deseja amar todo mundo e ser amado por todo mundo. Todos hão de reconhecer onde está o seu centro, para poder crescer à plena unidade no amor.
É por isso que Francisco celebrou a vinda de Deus ao mundo. Para ele, Deus é a encarnação da humildade, que se encontra até nas mínimas coisas: numa criança, que nasce num estábulo, no meio da indigência, da falta de abrigo, na pobreza e na miséria, em todas as necessidades, criadas por uma economia e uma política que permitem e aceitam a situação de refugiados e exilados, de pobres e leprosos como uma espécie de subprodutos. Deus nos convida a procurá-lo no meio dos pobres, também entre as criaturas sofredoras e famintas, entre seres humanos e animais. Por este motivo, Francisco queria conseguir que tanto o Imperador como também "todos os governantes dos povos" no mundo inteiro promulgassem leis que reconhecessem essa verdade. Para ele, o Natal dá o impulso para superar tanto a pobreza, como a fonte, para constituir o fundamento da verdadeira humanização das pessoas.
A continuação do Natal acontece na Eucaristia: Deus "se humilha todos os dias", entrando num pedaço insignificante de pão, partilhado pelos que acreditam nele (Adm1). Deus quer que - diariamente de novo - as pessoas se encontrem juntas na sua presença. Ninguém deveria continuar a se apegar a seus propósitos egoístas, ninguém deveria esconder-se no seu ninho individual, mas todos têm que se levantar de todos os lados para recomeçar a se reencontrar mutuamente e ao mundo inteiro: o mar e o campo, a terra e o céu: tudo há de reviver (CtOrd) e a "beatifica comunhão) (ParPn) que existe no céu há de se tornar visível e reconhecível já aqui na terra.
Natal significa uma subversão diária dos valores e uma transformação radical do comportamento humano. Aquilo que parece pequeno e insignificante tem que ser considerado grande; aquilo que é considerado importante e valioso tem que reverter à categoria das coisas sem valor. Os pensamentos de Deus não são os pensamentos humanos. Os leprosos pertencem ao centro, os poderosos têm de ceder-lhes o lugar central. A Família Franciscana é destinada a trazer a mudança divina e revolucionária para dentro do mundo, assim como Maria o exprimiu no seu canto Magnificat.
E é assim que Deus se une irrevogavelmente ao mundo. E somente aqueles que seguem o exemplo de Deus, assumindo o mundo para mudar o seu destino para o bem, estão do lado de Deus. Cruz e Ressurreição são extensões desse pensamento, são condensações, culminações, conseqüências dele. Portanto, Deus chega a ser a força histórica e modificadora para todos os que acreditam na Religião da Encarnação e que dão testemunho dela. Numa carta escrita por Francisco, ele definiu as pessoas que têm fé como "Mães de Deus". Como Maria, também nós podemos conceber Deus, carregando-o em nós e fazendo-o nascer pelas nossas boas obras. Portanto, podemos contribuir com nossa parte, para que Deus esteja realmente presente no mundo, de um modo visível e palpável (cf. 2CFi 53).
A seu modo, também Clara de Assis dá testemunho do mesmo mistério da Encarnação de Deus. Assumiu o pensamento místico do seu amigo Francisco para o aprofundar, alcançando um ponto alto na sua experiência interior, ao escrever a sua amiga, Inês de Praga: "Ama totalmente aquele que totalmente se deu por teu amor, aquele cuja beleza o sol e a lua admirará e cuja generosidade, preciosidade e grandeza não têm limites, isto é, ao Filho do Altíssimo, que nasceu de Maria, a qual permaneceu virgem depois do parto. Prende-te àquela dulcíssima Mãe, que engendrou tal filho que os céus não podiam conter e que, todavia, ela conteve no pequeno claustro de seu santo corpo e trouxe no seu seio virginal" (3Ctln 3). O infinitamente grande se limita; o inatingível se deixa tocar. Aqui Clara retoma o motivo de um antigo hino a Maria:
Aquele que a terra, o mar e o ar
Louvam, adoram e veneram;
Aquele, Senhor dos três mundos,
Foi contido no seio de Maria.
Seria bom se nós nos detivéssemos um pouco mais neste pensamento da livre autolimitação de Deus; pois, há de ficar o pensamento central da fé cristã. O fato da criação já foi um ato de autolimitação; Deus se retirou, se limitou para que a criação tivesse espaço, tivesse uma história autônoma, para que os seres humanos tivessem sua liberdade. E quando Deus se revela, então se submete à sua própria criação, se entrega nas mãos dos seres humanos, se deixa tocar, se faz presente em tudo que não é Deus.
Clara persegue essa idéia até os seus extremos: "Vejo como é manifesto que a alma do homem fiel, pela graça de Deus, a mais dignaç das criaturas, é maior do que o próprio céu. Pois os céus e todas as outras criaturas não conseguem conter o Criador, mas somente a alma do homem fiel pode ser sua mansão e sua morada. Isto é apenas possível pela caridade da qual estão privados os ímpios. Ora, aquele que é a Verdade diz: Quem me ama será amado pelo meu Pai e eu o amarei, e nós Viremos a ele e nele faremos a nossa morada" (Jô 14, 21-23) (3Ctln 4). Aquilo que aconteceu a Maria em nível biológico-histórico continua sendo uma possibilidade real em nível místico-espiritual para todo cristão que tem fé: a consciência de Deus, a Encarnação de Deus, a habitação de Deus dentro do ser humano.
Neste sentido, Clara escreveu a Inês: "Assim como a gloriosa Virgem das virgens o trouxe materialmente em seu corpo, da mesma maneira também tu, seguindo os seus passos, especialmente a humildade e a pobreza, sem dúvida alguma, poderás trazê-lo espiritualmente no teu casto e virginal coração. Deste modo, conterás aquele pelo qual tu, e todas as criaturas, são contidas. Igualmente possuirás algo mais precioso do que o resto dos bens passageiros que este mundo pode oferecer" (3Ctln 4).
Portanto, também para Santa Clara, o objetivo da Encarnação de Deus é o mundo, o universo.

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